(*) Célio Simões.
Eu era ainda um esforçado estudante do curso de Direito quando assisti uma palestra do ex-governador do Pará (que seria ministro do trabalho, da educação, da previdência social, da justiça e presidente do Senado Federal), coronel Jarbas Passarinho, quando ele fez uma interessante abordagem da origem, no Brasil, dessa verdadeira praga entranhada na administração pública que é o nepotismo, seja direto ou cruzado.
Disse o famoso político que a mais remota lembrança que se tem dessa perniciosa prática remonta ao descobrimento, quando Pero Vaz de Caminha, em missiva ao rei de Portugal, não se constrangeu em pedir um cargo para o genro, que seria remunerado, naturalmente, pela contribuição compulsória dos nativos da nova colônia, vítimas futuras de escorchantes taxas e impostos ditados pela Coroa, que nos idos de 1789 desaguou na Inconfidência Mineira, um dos mais relevantes movimentos sociais da história do Brasil.
Se conseguiu ou não a nomeação, o palestrante não informou, o que a meu ver se mostra irrelevante. Relevante é a circunstância de Pero Vaz ter feito o pedido em favor do contraparente, independente de ser por ele mensurada sua parca ou nenhuma qualificação para assumir o lugar pretendido.
Sem saber, o célebre o escrivão da frota deu o pontapé inicial no favorecimento gracioso na administração pública, tanto na colônia como no império, estendendo seus tentáculos, mais substanciosos, na fase republicana a partir de 1889, e assumida com extraordinário vigor nos dias atuais, onde proliferam notícias alarmantes desse procedimento aético e imoral - tanto em empobrecidas prefeituras nos rincões do País, como naquelas das capitais, governos estaduais e federal, onde a incompetência e o apadrinhamento se escondem fáceis nos órgãos da administração direta ou indireta, sempre receptivos na concessão de privilégios para os apaniguados do momento.
No mundo ocidental, uma de suas mais proeminentes figuras, que foi Napoleão Bonaparte, revelou-se não só um gênio na arte da guerra, cujas táticas foram assimiladas na maior conflagração mundial tanto por Adolfo Hitler, como pelos comandantes aliados que o combatiam, como um empedernido nepotista, haja vista que no remoto ano de 1809, nomeou “manu militari” nada menos que três de seus irmãos (Luciano, Luís e Jerônimo) a vários cargos de destaque, inclusive um de rei.
A Igreja Católica, muito antes de Napoleão ou Caminha, deu sua contribuição a esse indecoroso procedimento, tanto que a origem latina do termo (“Nepos”: netos ou descendentes), refletia esse tipo de relação tortuosa de alguns papas com sua parentada. Daí a chegar ao funcionalismo público, foi apenas questão de tempo. O curioso é notar que em tese os papas e cardeais jamais poderiam ter netos, mercê do voto de castidade, compromisso que sofre ultraje até hoje por muitos membros do clero (e são combatidos sem trégua pelo Papa Francisco), designados eufemisticamente como “sobrinhos”, para contornar o incômodo impasse e salvar as aparências. Deles todos, o papa espanhol Alexandre VI foi o que mais escandalosamente se entregou ao nepotismo, à corrupção, à vida mundana e ao suborno.
O Nepotismo é uma prática ilegal na administração pública. Configura-se, grosso modo, quando um agente político ou administrativo entrega de mão beijada um ou mais cargos públicos a seus familiares, pela simples razão de serem parentes, com o uso do poder ou do tráfico de influência.
Pelo fato da justiça brasileira proibir o nepotismo nos órgãos públicos, pode-se dizer que sua prática é uma forma de corrupção e diz muito sobre o caráter de quem o promove, assim como do próprio beneficiário. Nosso direito positivo profliga esse modus operandi, que ultraja o ordenamento jurídico e a consciência jurídica sendo por isso mundialmente repudiado.
Bem mais abjeto, pelo que tem de dissimulado é o chamado Nepotismo Cruzado, também ilegal, onde o esquema espúrio de privilégios funciona à base de um sub-reptício acordo de vontade entre as partes beneficiárias, visando favorecer os parentes de cada qual dos atores da farsa. Nem sempre fácil de ser detectado, considerando as ramificações dos serviços públicos, no mais das vezes verdadeiros monumentos à inutilidade, criados via de regra com o escopo de albergar esse contingente ávido pelas benesses do cargo, quando bem poderiam conquistá-lo, se competência tivessem, pela estreita e seletiva porta do concurso público.
É a negação, na prática, do que preceitua o artigo 37 da Constituição da República, que consagra os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência que devem presidir os atos da administração, nos quais estão definidas as balizas para a contratação de funcionários para qualquer das esferas da administração.
Papel fundamental tem o Ministério Público, instituição incumbida de fiscalizar a correta aplicação da lei e zelar pelos interesses da sociedade, que deve oferecer combate sem trégua ao nepotismo, promovendo em desfavor de quem o pratica a competente ação civil pública por improbidade administrativa, onde é possível postular a reparação pecuniária integral do dano causado ao erário e a perda da função e dos próprios direitos políticos do acusado, pelo prazo especificado na lei de regência.
É compreensível, portanto, a revolta dos cidadãos que impotentes presenciam esse tipo de conduta de certos políticos. Nenhum deles, diga-se de passagem, tem o topete de revelar essa tosca intenção durante suas dispendiosas campanhas eleitorais. Se o fizessem, não se elegeriam. Assim explica-se e talvez até se justifique a veemência e a exaltação dos eleitores enganados e da própria imprensa, cuja missão é noticiar os fatos, tal seja a enormidade dos abusos impunemente cometidos.
Os romanos anotaram, como razoável justificativa para certas ações delituosas, o “ímpeto da justa dor”, como se lê num fragmento do famoso jurista Papiniano, inserido no Digesto. Não havia, em tais casos, ânimo de ofender e por conseguinte, qualquer ofensa. Por isso ainda causa perplexidade jornais e jornalistas eventualmente condenados pela justiça por noticiarem tal ilegalidade, apesar da clareza meridiana com que o Supremo Tribunal Federal tem decidido esse tipo de questão.
É dever da imprensa fazê-lo. Eventuais excessos, em tais situações, sempre foram considerados pelos tribunais com leniência e compreensão, diversamente do que ocorre quando as notícias são inteiramente falsas ou as imputações são gratuitas ou imotivadas. Entendo assim ser tarefa indeclinável do Ministério Público, com a independência funcional e a credibilidade que tem o combate firme ao nepotismo, erva daninha que contamina o próprio Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Republicana de 1988.
Onde a voz de um promotor se sentir ouvida ou sua palavra for lida, a ilegalidade e a injustiça de tais situações tendem a não prosperar, ou pelo menos - o que já agrada bastante - o abuso de certos políticos e gestores não será tão ostensivo, escandaloso, arbitrário e afrontoso.