Fernando Canto.
No cemitério todos estão iguais: mortinhos. Mas as pessoas que o visitam no Dia de Finados estão ali para reverenciar os mortos pelas suas qualidades, pela saudade que ficou, pelo respeito à obra que deixaram ou pelo amor que ainda paira na lembrança.
Assim o cemitério torna-se um lugar da memória porque ali cada lápide é uma imagem que enclausura um objeto de representação social ou familiar. E a presença dos parentes e amigos não só traz o significado do respeito e da fé religiosa como também o da mudança que se opera em todos os homens e mulheres diante da inflexibilidade da morte. Torna-se também lugar de oração, culto e reflexão.
Embora já não represente mais tanto mistério nem incuta mais tanto medo, o “campo santo” no centro da cidade é apenas mais um dos tantos aparatos urbanos encravados e irremovíveis que chegam a causar muitos problemas para as administrações municipais. Principalmente os de natureza ambiental, porque o chorume humano polui densamente os lençóis freáticos das suas redondezas, algo semelhante quando combustíveis como óleos ou gasolina penetram no subsolo.
É um lugar democrático: defuntos de todas as classes sociais estão enterrados nele. É um local frequentado por pessoas de todo tipo, que expressam seus sentimentos das mais diversas maneiras. Há fanáticos, por exemplo, que se atrelam a um devocionismo doentio, pois crêem que determinado defunto faz milagres e por isso pedem o que querem e inundam seu túmulo com plaquetas de agradecimento “pela graça alcançada”.
Já vi homens virarem santos por obra e graça dessa morbidez que povoa a cabeça dos devotos. Vi pessoas serem homenageadas com pompas fúnebres pela ilibada conduta pessoal e profissional que tiveram, assim como já vi impropérios atirados a assassinos mortos pela polícia e a um político que a vida toda enganara eleitores e a família. Soube, inclusive, que nos anos 60 muita gente soltou foguetes no enterro de um delegado famoso por sua perversidade para com os presos.
O cemitério também é um lugar de encontro dos amigos. Ora, depois de uma rezada básica para os parentes, antigos amigos que hoje só se encontram no dia das eleições ou numa decisão do campeonato amapaense no Glicerão, se cumprimentam e se põem a conversar sobre conhecidos que já morreram. Então vêm à tona inesquecíveis episódios e velhas piadas sobre eles. A memória se reacende e traz de volta à vida o homem e sua conduta, mesmo que lhe reste apenas o pó dos ossos sob a lápide.
A conversa gira sobre os assuntos mais banais: desde a vizinhança de túmulos de entes queridos aos preços cobrados pelos coveiros que estão “pela hora da morte”; desde os “bons e velhos tempos” às doenças enfrentadas por eles (principalmente o diabetes) e as consultas periódicas aos médicos; desde aos planos mais mirabolantes às tentativas de convencimento a votar em certo candidato.
Em que pese a gritaria e o comércio de ambulantes que quase não deixam as pessoas passarem na frente do cemitério, a homenagem aos mortos passa a ser um acontecimento um tanto quanto banalizado pela força do capital que se instaura em qualquer lugar, seja onde for. Alguém vai sempre lucrar com isso. E como a morte rende. Não é à toa que cada vez mais aumenta o número de vendedores e de produtos diversificados nas proximidades das necrópoles. Não é à toa que o comércio abre suas portas mesmo sendo feriado.
Não quero dizer que acho isso estranho, pois tudo muda, evolui. Mas lembro com certa saudade a programação musical da extinta Rádio Educadora São José no dia de finados. O dia todo só tocava música clássica. Isso despertou em mim a curiosidade pelos eruditos que os padres italianos ouviam com prazer.
Cemitério é palavra que vem do grego, koimeterion, que significa “dormitório”. Como eu não quero ainda “dormir” na “Cidade dos Pés Juntos”, prefiro ir até lá para exercitar a memória e jogar conversa fora com os amigos.