MATIZES DE OCASO

MATIZES DE OCASO

Haroldo Figueira.

O cenário crepuscular conjeturado, aqui, guarda bastante similitude com o de um fim de tarde qualquer. A esfera cor de ouro do sol, agora visível sem encandear os olhos, à medida que vai se recolhendo no horizonte tinge o espaço celeste com uma profusão de cores de relaxante suavidade, passando do tom avermelhado, pelo laranja, rosa, verde, azul, cinza e lilás, entre outras tonalidades menos definidas. As nuvens, antes chumaços brancos de algodão, transformam-se em manchas em tons de chumbo ornadas de dourado ou de vermelho nas bordas. Um refrigério para a alma.

Acho difícil encontrar alguém que não se deixe arrebatar pelo espetáculo do pôr do sol, sem dúvida uma das mais esplendorosas manifestações da mãe natureza. Por outro lado, impressiona constatar que, independentemente do lugar onde os espectadores estejam, os cenários cambiantes do céu matizado e do efeito decorativo que a luz solar provoca na paisagem à nossa volta oferecem sempre algo deslumbrantemente novo para prender-nos a atenção. 

Quero dizer que, do ponto de vista interior, o impacto agradável do crepúsculo não se altera para o contemplante; já exteriormente, no que diz respeito à configuração paisagística, sim. O visual luminoso de um determinado entardecer não costuma se repetir no outro, ainda que presenciado do mesmo posto de observação. Cada fim de tarde, portanto, parece brindar quem o observa com um atrativo peculiar.

Incorrigível admirador do fenômeno, já o visualizei em diversificadas versões e em diferentes lugares dentro e fora do Brasil. Posso testemunhar que a sensação recorrente que experimentei foi a de estar sendo apresentado a algo pitoresco, inédito, deixando-me, inclusive, sem condições de estabelecer comparações, diante da dificuldade de apontar qual a imagem mais bonita.

Além do ingrediente estético, a hora do pôr do sol envolve, também, um lado místico, principalmente para os cristãos que professam a fé católica. Isso acontece por coincidir com o horário em que, segundo a tradição, o Anjo Gabriel anunciou à Virgem Maria que ela ficaria grávida do Salvador. A combinação desses dois aspectos tem inspirado, ao longo da história, artistas ligados principalmente às letras e às artes plásticas.

José de Alencar, talvez tenha sido o escritor que melhor descreveu as circunstâncias do ocaso. Na primorosa resenha que faz no capítulo VII, A Prece, do romance “O Guarani”, conduz a narrativa não se limitando a falar, apenas, do cair da tarde em si, mas dando ênfase, também, à agitação que provoca na natureza e ao sentimento de religiosidade que, nessa hora, se apossa de seus personagens. O enredo se desenvolve no ambiente do Brasil colonial, época em que os biomas nacionais ainda se achavam preservados. Talvez por isso, o pôr do sol a que o romancista se reporta aconteça sobre a mata.

Trata-se de texto bastante conhecido. Ainda assim, pelo que encerra de belo, não resisto à vontade de transcrever um pequeno trecho: “A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores. Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada; enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia. Um concerto de notas graves saudava o pôr-do-sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda, e ceder a doce influência da noite. Era a Ave-Maria”.

Logo adiante, como que desejoso de chamar a atenção do leitor para a conjunção entre o físico e o espiritual que naquele instante acontece, o autor cearense acrescenta: “Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite”.

O pintor francês Jean-François Millet foi outro que tentou, inspirado na coincidência entre o momento fenômeno crepuscular e o da devoção religiosa, dar forma a essa interação fazendo uso dos pincéis. É dele o famoso quadro Angelus, onde um casal de agricultores aparece interrompendo o trabalho no campo, de cabeça baixa, na postura piedosa de quem louva e agradece a Deus. Ao fundo, vê-se a reverberação das cores do entardecer na abóboda celeste.

O maestro, poeta e compositor santareno Wilson Fonseca é mais um artista que menciona o pôr do sol em sua obra. Faz isso ao cantar os esverdeados olhos de sua sobrinha Bernadete - então com mais ou menos oito anos de idade -, na valsa do mesmo nome que compôs em sua homenagem. A intenção do músico seria retratar o olhar da menina em todas as suas nuances. Depara-se, no entanto, com um enigma de difícil decifração. É o que ele explicita na letra da canção, a saber: “Busco, em vão, traduzir...desvendar/ O mistério que tem seu olhar/Não consigo, sequer/Seu matiz conhecer! É o luar...Céu azul...Verde mar/Que se espelham em teus olhos de santa?/Não cantarei/Em meus versos porque não sei!.../Teu olhar/ É um poema divino...perfeito/É sem par/ Deus o fez sem defeito!/Não será/Um artista capaz de pintar,/ Mesmo em matizes de ocaso/O encanto do teu olhar!”.

Fico imaginando quão fascinante e sem paralelo deve ser o olhar da musa (hoje, uma senhora) Bernadete. Fascinante e inefável, já que nem a sensibilidade poética de seu talentoso tio, mesmo após inspirar-se no que a natureza exibe de mais encantador, aí incluídos os matizes de ocaso, revelou-se capaz de descrevê-lo na plenitude de sua rara beleza.

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