Haroldo Figueira.
Não, o título acima não tem nada a ver com aquela expressão típica do norte do país, que serve para designar certo lance plástico das partidas de futebol, muito aplaudido nos estádios, e que consiste em o jogador habilidoso calcar com o pé a bola por debaixo, alçando-a por sobre a cabeça de seu marcador, de modo a desvencilhar-se dele.
Em outras regiões, especialmente nas que englobam os estados do sul e sudeste, o termo utilizado para nomear essa jogada é outro. Lá os aficionados do esporte chamam-na de chapéu ou lençol, o que a rigor dá no mesmo, já que o sentido de encobrir o adversário mantém-se preservado.
O banho de cuia a que aqui faço alusão nada tem de metafórico. É, com todas as letras, aquele que nos tempos de menino a gente tomava – e, talvez, ainda hoje outros garotos devem tomar - junto aos tambores cilíndricos de metal, presentes, à época, em quase todas as residências obidenses e que funcionavam como depósitos adicionais para armazenar água potável.
De um modo geral, os barris eram postados no quintal, debaixo de uma árvore frondosa, a fim de proteger o precioso líquido do forte calor do sol amazônico e conservá-lo em temperatura amena. Quase sempre havia, ao lado, uma extensão vertical do encanamento, munida de uma torneira na extremidade, com a finalidade de deixá-los permanentemente abastecidos. Na superfície aquosa de pelo menos um deles lá estava a cuia flutuando.
Em tempos de escassez no fornecimento, serviam para receber água coletada no rio Amazonas, transportada até eles nos ombros ou na cabeça de carregadores de aluguel, em latas de flandres de 20 litros, originalmente fabricados para servir de recipientes de querosene. Conservar os reservatórios cheios, ora com água tratada, ora com a retirada do rio, mostrava-se fundamental para as atividades domésticas.
Em casa, debaixo de um pé de saboneteira, haviam três desses depósitos. Em determinadas residências, dependendo do tamanho do grupo familiar, era possível encontrá-los até em maior número. A capacidade individual dos tonéis era de aproximadamente 200 litros. Revesti-los por dentro e por fora com tinta a óleo revelava-se medida aconselhável, a fim de prevenir corrosões por ferrugem.
Como era gostoso, logo cedo, antes de ir para a escola, após uma pelada futebolística ou, à noite, preparando-se para dormir, banhar-se com aquela água fria, derramando-a, seguidas vezes com a cuia a partir da cabeça, em porções generosas, de modo a molhar o corpo por inteiro. Não havia quentura, sonolência ou indisposição de outra ordem que resistissem ao efeito refrescante daqueles banhos.
Ao falar disso, me veio de repente à lembrança a figura do Antônio Rala-Rala. Antônio era um sujeito boa-praça, divertido, meio zombeteiro, às vezes meio bravateiro. Costumava dizer, por exemplo, que se um dia ganhasse na loteria, iria contratar uma lavadeira só para tirar o amarelo das notas de mil cruzeiros.
O apelido rala-rala derivava da atividade de venda de suco de fruta gelado, trazido de casa armazenado em garrafas, com a qual, em dias festivos, defendia algum dinheiro extra. Produto de consumo de boa aceitação popular, caracterizava-se por uma particularidade: era servido em copos de 150 ml, misturado com raspas de gelo que o vendedor obtinha na hora, esfregando uma espécie de plaina de alumínio na superfície do bloco respectivo.
No quintal da casa do Rala-Rala havia alguns desses tambores posicionados debaixo de uma mangueira. No vasilhame que ficava de frente para a rua, uma inscrição com letras garrafais, feita com tinta branca, chamava a atenção, como se fosse importante que o transeunte que passasse na rua dela tomasse conhecimento: “cabe de 8 a 10 latas bem forgado”.
Rememoro os banhos de cuia sem esconder que o faço com saudade. Uma sensação, no entanto, que nada tem de triste ou de descontente com a realidade contemporânea. Pelo contrário, trata-se de um sentimento agradável, revitalizante, vestígio de um momento bom da vida, que a roda do tempo deixou para trás.
Natal, 05 de fevereiro de 2020.