Haroldo Figueira
Para quem não conhece Óbidos, Geretepaua é uma propriedade rural localizada à margem esquerda do Rio Amazonas, distante poucos quilômetros da cidade. Arriscaria presumir que, hoje, provavelmente já integre o seu perímetro urbano. O nome, de origem indígena, deriva de como é chamado o bonito e piscoso lago existente dentro dos limites territoriais da gleba.
Pelo que fui informado, pertenceu à tradicional família Rego, que tinha como chefe o Sr. Félix Rego. Com os falecimentos do patriarca e de sua esposa, o domínio do imóvel, provavelmente, transferiu-se por herança para os muitos filhos do casal, dentre os quais Mário Ferreira do Rego, de quem passarei a falar de ora em diante.
Mário era uma pessoa cativante, inteligente, espirituosa, articulada. Sua presença em qualquer roda de conversa tornava o encontro divertido, animado, regado a muito riso e descontração. Não apenas devido às suas incontestes aptidões como piadista da melhor qualidade. Revelava-se, também, um imaginativo criador de histórias engraçadas envolvendo pessoas da comunidade, de cujo viés jocoso não poupava nem a si próprio. Creio que já me reportei a algumas delas em outra ocasião.
Não possuía apenas o dom de criar e contar anedotas. Costumava fazer encenações ao expô-las, também, o que induzia parte de seus ouvintes, às vezes, a tomar como verdadeiro seu discurso ficcional. Logo todos se davam conta, porém, de que suas narrativas – algumas das quais testemunhei, outras as ouvi de fontes fidedignas - não passavam de gozação. Tudo brincadeira.
Comentava com ar de indignação que nada o aborrecia mais do que receber cobrança de algum papagaio vencido que levantara no banco. Que o gerente se dirigisse aos seus avalistas, pois não eram eles os garantidores da dívida? Além do mais, afirmava ter por regra não pagar nenhuma conta até que se esgotasse o último prazo para fazê-lo. Agia assim por não descartar a intervenção do acaso. De repente, algum dinheiro inesperado poderia pintar, quem sabe até provindo de um prêmio de loteria cujo bilhete sorteado ele não havia adquirido.
No mesmo tom brincalhão confessava que, irritado com os pedintes que pela manhã batiam à sua porta, indiferentes à ressaca braba do porre que tomara na noite anterior, resolvera adotar uma medida “enérgica” para afastar esses visitantes inconvenientes. A exemplo do que faz a rede hoteleira em benefício da privacidade de seus hóspedes, afixou na entrada de sua residência um cartaz com os dizeres “DO NOT DISTURB”, tomando o cuidado de listar, abaixo da frase em inglês, uma série de traduções elucidativas: “NÃO PERTURBE”;“NÃO BATA”; “ NÃO INCOMODE”; “NÃO CHATEIE” ; “NÃO APORRINHE”; “NÃO ENCHA O SACO”.
Houve uma época em que tentou explorar economicamente o Geretepaua. A experiência em si não tem, aqui, maior relevância. Presta-se, porém, para ressaltar que, por qualquer lugar aonde transitasse, seu faro para perceber elementos burlescos que mais tarde serviriam de motes nos causos e troças que bolava permanecia aguçado. É o que veremos abaixo.
Dentre seus companheiros habituais de mesa de bar havia um de quem gostava de zoar. Dizia fazer isso porque o considerava um incorrigível contador de vantagens. O suposto fanfarrão, que atendia pelo apelido de Jacaré (alcunha fictícia), gabava-se de várias proezas, inclusive a de prover sua família com o que havia de melhor em termos de alimentação e conforto. Bastava ver, vangloriava-se, como suas crianças cresciam fortes, bonitas e saudáveis.
Certo dia, justo quando insistia nesse tipo de bravata, eis que surgem no bar, nus da cintura para cima, dois garotos franzinos chamando-o de pai. Pediam dinheiro para comprar farinha. Tão logo os pequenos, depois de atendidos, partiram de volta para casa, Mário interpelou o companheiro: - então são esses os meninos robustos que você tanto enaltece? Pois olha, amigo, foi olhar para eles e me vir à mente os cachorros do Geretepaua; quanta semelhança! E antes que fosse indagado sobre o porquê da comparação, acrescentou: - de tão magros, os cães mal conseguiam equilibrar-se quando batia um vento mais vigoroso. E para mostrar como os animais se comportavam, levantou-se e pôs-se desengonçadamente a imitar os seus movimentos, andando de lado e trançando as pernas.
Na intimidade, dava para perceber que por trás da aparência de sujeito alegre e bem-humorado escondia-se um homem amargurado. Mário passara grande parte de sua vida adulta em Curitiba. Lá constituiu família e ascendeu social e profissionalmente, chegando a ocupar elevados cargos executivos em multinacionais do como a Goodyear e a Mercedes Benz. De repente, devido, talvez, a essas reviravoltas inesperadas da vida, desencantou-se, resolveu deixar tudo para trás e voltou para a sua terra natal, onde, poucos anos depois, veio a falecer.
Creio que seus restos mortais ainda repousem no velho cemitério São João Batista. O mesmo que batizou de “Cemitério Triste” em uma das crônicas que escreveu. Adjetivou-o, assim, após confrontá-lo com o seu congênere localizado no bairro de Água Verde, na capital paranaense e constatar que a diferença mais marcante entre os dois não se devia tanto ao contraste entre a humildade daquele e a opulência do último, mas à sensação de melancolia difusa que a necrópole obidense deixava transparecer, alcançando até a figura do Cristo pregado na cruz que, de acordo com o seu modo peculiar de avaliar as coisas, expunha mais sofrimentos e sinais de flagelação do que imagens similares costumam exibir.
Que sua alma descanse em paz.
Natal, 01 de novembro de 2016.