Por Fernando Canto.
“Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra não passa de uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria certamente visto em si mesmo. O conhecimento, por seu foro íntimo, do que diz o livro, é a prova da verdade deste, e vice-versa, ao menos até certo ponto, a diferença entre os dois textos devendo ser frequentemente imputada não a quem escreveu, mas a quem leu” (Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido”, v. 7: O tempo redescoberto).
Meus livros Mama Guga e O Centauro e as Amazonas, ambos publicados pela Editora Paka-Tatu, de Belém, em 2017 e 2021, respectivamente, foram considerados como leitura “não-recomendável” para os jovens que frequentam a livraria e café Pajé, em Macapá. A proprietária me chamou e me entregou os livros não vendidos.
A princípio, não liguei, pois, com a minha idade, já ando calejado das coisas que passei na vida e não quero brigar ou procurar direitos onde não tenho. Mas cheguei a contar o fato numa live de um importante canal de literatura amazônica, de Belém-PA (Bate-Papo Literário com Paulo Maués Corrêa, no YouTube) e para alguns amigos. Todos lamentaram o ocorrido e ficaram indignados.
O interessante é que deixei meus livros lá por não termos muitos lugares para mostrar nossos trabalhos impressos, visto que outro café teve sua livraria fechara há poucas semanas em um supermercado na zona sul da cidade. Mesmo assim, já havia lançado a primeira impressão – de luxo – de O Centauro e as Amazonas no ano passado, com sucesso nas vendas.
Não tenho ideia do que levou a empresária a me devolver os livros, mas creio que nenhuma atitude que diz respeito à divulgação de obra tenha apenas o fundamento sexual implícito nos contos que os moralistas, normalmente religiosos, tendem a ser contra. Perguntei a mim mesmo: como eu escreveria algo a ser considerado “não-recomendável para jovens” se estes sabem tantas coisas oriundas mais das redes sociais do que do convívio social familiar e educacional desde a adolescência? Ora, a clientela do lugar não é formada só de jovens e, pelo que vi, os livros ali expostos se diversificam entre “clássicos” e “ingênuos”. Mas quem disse que as interpretações desses clássicos e ingênuos não vão além do mero texto escrito?
Desde que me entendo como leitor, e tendo uma constelação de bons autores não só para meu deleite como também para complementar meus estudos acadêmicos indispensáveis para a interpretação/construção de teorias e conceitos, tive que me tornar escritor, leitor obsessivo e crítico mordaz. Viajei, por exemplo, desde os versos lascivos de Safo e de Juvenal da antiguidade clássica, de Davi e seus Salmos bíblicos, assim como “Os Cânticos”, de Salomão, e de outras passagens da magnífica Bíblia, como a do anjo que chega em Sodoma, e seus habitantes o querem para praticar sodomia. E o que dizer de Adão e Eva e da simbologia da maçã e da serpente ou ainda das filhas de Jó, que embriagam o próprio pai para procriarem? Ora, de Dom Quixote de la Mancha aos parlapatões da idade Média, com seus cantos satíricos e contos fesceninos; dos contos de fada dos irmãos Grimm ao Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, de Sade a Bocage, de Bukowski a Hilda Hilst. Muitos deles são explícitos e convivem harmonicamente na minha biblioteca e em muitos lugares frequentados pelos jovens com os clássicos da antropologia de Malinowki e o existencialismo de Sartre e Simone de Beauvoir. Sem contar as descrições da vida sensual indígena brasileira em tantos que experimentaram estudá-la, como Darcy Ribeiro, Manuela Carneiro da Cunha, Claude Lévi-Strauss e Nunes Pereira. Descrevo esses autores apenas pelo lado mais picante (erótico) da literatura universal, pois os clássicos da sociologia política que estudei na faculdade se espalharam para mudar o mundo, notadamente em muitos países que atravessavam seus cruciais momentos históricos, após guerras e revoluções. E muitos destes eu li por obrigação profissional.
Muita gente me conhece e sabe das minhas posições políticas e ideológicas. Desde o início da minha carreira como compositor, há mais de 50 anos, no tempo da ditadura militar, comecei a ser censurado pelas minhas músicas submetidas aos festivais de Macapá. Era um tempo infértil e insidioso para uma juventude robotizada pela propaganda que não quis que habitasse nas minhas aspirações. Fui preso e detido muitas vezes como uma espécie de “rebelde sem causa”, marcado pela violência psicológica e física de amigos que também ousaram falar contra a imposição da força que limitava toda liberdade de expressão. Mas um dia tudo muda.
E tanto mudou que hoje a juventude é a porta-voz da mediocridade aspergida sobre ela pelas artes impostas pela mídia capitalista. Valores invertidos, aqueles que não avançam, permitem a música brasileira bailar sobre os jovens com temáticas mais explícitas de melodias, ritmos e letras do funk e do sertanejo sexual grosseiro da atualidade do que o conteúdo dos meus livros, claro, onde conto histórias para quem folheia suas páginas em silêncio. Disso eu tenho certeza!
O professor Paulo Nunes, um estudioso da Literatura Amazônica, narra, em recente e fundamentado artigo sobre as violências coloniais da Amazônia, que a nossa literatura “vista de fora é estranha, estúrdia e de ‘difícil entendimento’, por isso é exótica (ex-ótica, fora de meu olhar, fora de mim, portanto), dentre outras adjetivações”. Só que eu acho que o colonizador está ainda muito próximo de nós, com seus preconceitos e raivas. Paulo Nunes fala que a Amazônia ainda é uma ilustre desconhecida e está fora dos cânones literários brasileiros. Ele diz que somos invisibilizados e desprestigiados pelos críticos e pela literatura nacional. Somos mesmo.
Não quero crer que o que aconteceu com meus livros foi uma situação isolada. Vejo nas livrarias locais que a exposição dos livros produzidos por autores locais está, na verdade, sempre escondida e nunca merece lugar de destaque nessas lojas; podem reparar.
Mas não é só isso. O fato é que meu nome não está ligado ao sistema de poder que privilegia apenas o valor da produção, mas não seus produtores. A censura ideológica-sexual-política traduz bem a invisibilização dita pelo professor Paulo Nunes. O texto não sugere, mas não deixo de acreditar que estamos em nosso quarto, em nossa floresta, dormindo com o inimigo, com os ratos desvalorizadores e roedores da nossa cultura e da nossa arte em todos os segmentos, assim como se a qualidade não fosse um foco, um objetivo constante dos que lidam com a arte. Continuam alimentando o velho complexo do vira-lata de que só é bom o que vem de fora. E no Amapá é um pouco pior que isso. É como se nada aqui prestasse, como se não bastasse a antipolítica de incentivo à produção cultural.
Mas, como se sabe que tudo muda, talvez as obras “não recomendáveis para a juventude” mudem de foco, pois um autor pode ser, sim, desprezado pelos próprios livreiros, já que sua obra não é recomendável. Significa, então, que não se pode confiar nessa obra, que não se pode indicar, avisar ou fazer ver, não merece distinção ou privilégio, pois ela perverte, ou seja, pode corromper, desmoralizar ou depravar os “ingênuos” leitores enquanto os livreiros ignorantes vendem os livros de Anaïs Nin, Florbela Espanca, de Drummond, de Guimarães Rosa e de Bandeira, que ousaram romper com o parnaso e a mesmice ao falar do corpo como o conjunto inerente à alma, com seus defeitos, estéticas e arte. Hoje ninguém vê mais luxúria ou violação em seus contos e poemas. Hoje pré-adolescentes também se divertem com os mangás japoneses e jogos eletrônicos eivados de ilustrações e animações sensuais. Mas isso é permitido e até estimulado; minha literatura não.
A ficção que produzo tem origem na irrealidade cotidiana da Amazônia. Talvez por isso o preconceito seja maior, pois releio o concreto e transformo em fantástico; absorvo o mito e mudo a leitura construindo a diversidade, a alteridade e a empatia do escritor e sua imaginação, ao querer dar valor ao que me cerca diariamente. Ainda que há anos eu não participe de concursos literários, por questão pessoal, admito que já fui premiado em alguns deles, importantes no processo de consolidação da minha carreira e agradeço a lembrança do meu nome e meus trabalhos em muitos vestibulares e concursos. Sei que não foi por essa causa por que me tornei um “escritor pervertido” aos olhos da livreira. O que está em jogo é, certamente, o momento político, a ideologia arraigada dos retrógrados e o falso moralismo que conduz a arte e a ciência ao pélago de fogo de uma Inquisição contemporânea, monstruosa como o Leviatã e silenciosa como a serpente do Paraíso.
O fato de a expressão “não-recomendar” ser o mesmo que “não-lembrar” deixo apenas a reflexão de que é assim, pelo esquecimento e pelo esvaziamento dos corações, que desconstruímos nossa memória, nossa identidade e o nosso destino. Por isso é preciso lutar por novos espaços e eventos que dignifiquem a literatura aqui produzida. Basta de falsidade!
Texto de Fernando Canto/ Blog Elton Tavares
(*) Fernando Canto é escritor, compositor e doutor em Sociologia.