Haroldo Figueira.
Surucucu é uma serpente encontrada na Amazônia, muito temida pelos moradores da região. Especialistas consideram-na a maior cobra venenosa das Américas, podendo ultrapassar dois metros de comprimento. Uma vez inoculado no sangue da vítima, e caso não sejam adotadas medidas tempestivas de neutralização dos efeitos tóxicos, seu veneno pode matar em poucas horas.
Desassistidos e entregues à própria sorte, até por habitarem lugares de difícil acesso, os amazônidas da área rural buscam na natureza os meios para a sua sobrevivência. Contra mordidas e ferroadas de animais peçonhentos, as comunidades ribeirinhas da área territorial paraense do Baixo Amazonas – onde se localiza Óbidos, minha cidade natal – utilizam-se de um eficaz antídoto à base de ervas produzido artesanalmente por uma família nativa, cuja fórmula é passada de pais para filhos e mantida sob rigoroso sigilo.
Especula-se que o Sr. Assis – o já falecido patriarca do clã - teria descoberto a substância medicamentosa por acaso. Reza a tradição que, nas suas andanças pela floresta, testemunhara um acirrado combate entre uma surucucu-pico-de-jaca (a mais temível da variedade, semelhante à cascavel, só que sem o chocalho) e um jacuraru (espécie de camaleão). Observou que, mordido pela víbora, o lagarto corria até um determinado arbusto, engolia algumas folhas e voltava para a luta sem dar sinais de debilidade. Fez experiências e comprovou as propriedades antiofídicas do vegetal.
Para os nortistas, falar na serpente remete a risco de morte. Mariano, um pândego amigo de juventude, usava a imagem da cobra para metaforizar situações de perigo iminente. Diante de qualquer ocorrência mais arriscada como, por exemplo, trafegar de carro por uma estrada e se deparar com um buraco aberto no meio da pista ou passar por uma encosta que ameaçasse desabar, valia-se da expressão: “olha a boca da surucucu!”.
Penso nessa alegoria ao me dar conta do clima de insegurança que toma conta dos grandes centros urbanos do país. Aliás, não só das metrópoles. De uns tempos para cá, até mesmo pequenas comunidades interioranas, antes tidas como redutos de tranquilidade, tornaram-se alvos constantes de explosões de caixas eletrônicos de bancos e invasões de agências dos Correios por bandos fortemente armados.
A realidade é que, no Brasil, a violência elevou-se a níveis absurdos. A começar pelo trânsito louco, que mata ou incapacita fisicamente milhares de pessoas a cada ano. No entanto, o que estarrece para valer é o crescimento, o poder de fogo e a desenvoltura da bandidagem que, talvez por confiar na impunidade ou apostar na ineficiência do sistema repressor do Estado, sai por aí assaltando, roubando, sequestrando, estuprando, assassinando sem dó nem piedade.
Ao que tudo indica, nosso sistema penitenciário faliu. A pedagogia da perda da liberdade já não funciona, nem para intimidar, muito menos para ressocializar delinquentes. Quem entra na cadeia sai pior. Superlotados, os presídios viraram depósitos degradantes de seres humanos, escolas de banditismo, núcleos administrativos do crime organizado. Do interior das prisões, chefões mafiosos comandam – e seus asseclas do lado de fora executam – toda sorte de atentados violentos contra a vida e o patrimônio da população.
A rigor ninguém se sente protegido. E, pior, não há lugar onde se refugiar. Residências, escolas, ambientes de trabalho, hotéis, lojas, igrejas, hospitais, shoppings, condomínios de luxo – equipados, assinale-se, com o que existe de mais moderno em termos de aparato de segurança - e até mesmo delegacias de polícia e quartéis, nenhum desses locais representa abrigo seguro contra as investidas perversas dos infratores da lei.
O medo democratizou-se. Entre os mais abastados, há, inclusive, quem cogite mudar-se com a família para outros países. Já para os posicionados do meio para baixo da pirâmide social, sem recursos para custear eventuais evasões, não restam alternativas. O jeito é torcer ou rezar para que o pior não lhes aconteça e... Seja o que Deus quiser.
Por certo, a metáfora do Mariano não dá conta de exprimir com precisão o sentimento de impotência que atualmente se apossou da sociedade brasileira. Ainda assim, serve para dar uma ideia da sensação coletiva predominante, análoga à de alguém que se encontra diante da boca escancarada de uma surucucu prestes a dar o bote e que, desesperado, percebe que não há, por perto, nada que possa socorrê-lo, nem mesmo algo parecido com o contraveneno elaborado pela família Assis.