Haroldo Figueira.
Tenho com o Rio Amazonas uma relação de proximidade muito grande. Mais que isso, um forte vínculo afetivo, a ponto de sua lembrança me acompanhar onde quer que eu esteja. Nasci e me criei, em Óbidos, praticamente às suas margens. Anos a fio tive-o diante dos olhos. Sobre ele naveguei, nele me banhei, testemunhei seus momentos de serenidade e também de agitação. Em síntese, somos mais que velhos conhecidos.
Seus muitos atrativos, naturais ou não, sempre exerceram certo fascínio sobre mim. Lembro, por exemplo, de como era relaxante observar o desfile de embarcações de todos os tipos e tamanhos, desde cargueiros de grande calado até frágeis canoas, cruzando-o em incessante vaivém; ou do prazer de contemplar, nos finais de tarde, pores do sol deslumbrantes, com a luminosidade do astro rei, ao mesmo tempo, espargindo cores suaves no firmamento e marcando o leito fluvial com uma extensa faixa alaranjada; ou, ainda, entreter-me com a dança dos barcos atracados ao porto no ritmo do banzeiro provocado por ventanias eventuais ou pela passagem de veículos náuticos de maior porte.
Seria imperdoável não falar de dois outros eventos, relacionados com o rio, para o quais conflui o interesse popular. O primeiro deles acontece em junho. É o Círio de Sant’Ana, desfile fluvial de motivação religiosa, em que dezenas de embarcações, apinhadas de fiéis, lideradas pela que conduz a imagem da santa, navegam em direção ao porto da cidade para, dali, seguir em procissão com destino à catedral, abrindo as celebrações da festa da padroeira dos obidenses.
Mais ou menos na mesma época ocorre o segundo, ligado ao que se convencionou chamar de fenômeno da piracema, mas que, na minha visão de leigo, parece provocado menos pela atividade de desova e mais em razão do instinto de sobrevivência - os animais, tangidos pela perspectiva de represamento em lagos e afluentes por conta do processo de vazante, migram em cardumes para águas mais profundas. É quando se acontece a pesca do jaraqui. Dá gosto ver o Amazonas coalhado de pescadores. Centenas deles, a bordo de canoas, competem na captura dos peixes, lançando tarrafas que, antes de submergirem e em seguida serem trazidas à tona abarrotadas de pescado, desenham círculos no ar. Um espetáculo e tanto!
A utilidade dessa dádiva da natureza é extraordinária. Não dá nem para mensurar, adequadamente, a extensão dos benefícios que presta às comunidades ribeirinhas. Além de exercer o importante papel de estrada natural, servindo de via para o deslocamento de pessoas, importação de mercadorias e de escoamento da produção, funciona, ainda, como fonte de fornecimento de recursos hídricos - inclusive, para consumo humano - e de alimentação, haja vista tratar-se, como já comentamos acima, de um rio abundantemente piscoso.
Quando criança, tinha-o como objeto de diversão. Nadar contra sua potente correnteza, brincar de belário com outros meninos da mesma idade - espécie de pega-pega, só que realizado debaixo d’água, exigindo dos competidores agilidade para esquivar-se de ser tocado pelo companheiro -, pescar de linha comprida a partir de pontos selecionados de sua orla: Cais, Pedra Grande, Porto de Cima, Pingo d’Água, representavam passatempos tanto lúdicos, quanto desafiadores, por comportarem certa dose de risco.
Certa vez quase me dei mal ao explorar uma das opções de lazer disponibilizadas pelo prodigioso curso d’água. Consistia em descobrir e ficar de pé em bancos de areia que se formavam ao largo, assim que tinha início o período semestral de vazante (final de junho/início de julho). Contrariando a estratégia habitual de chegar até o local, resolvi nadar em linha reta em direção ao alvo enfrentando a forte corrente. Não dei conta. Exausto, vi-me arrastado para bem distante da margem. Por pouco não me afoguei. Fui salvo providencialmente por um pescador que se encontrava nas proximidades.
O mesmo rio que encanta, também assusta. Navegar em sua volumosa caudal, por si só, já se mostra proeza arriscada. Cresce ainda mais o perigo quando o navegante não se pauta pelos ditames da prudência e do bom senso. Infelizmente, naufrágios com perdas numerosas de vida têm se constituído em uma realidade tanto atroz, quanto corriqueira. Houvesse uma fiscalização rigorosa das autoridades portuárias e uma postura mais responsável por parte proprietários e condutores de embarcações, com certeza muitas dessas tragédias seriam evitadas. Refiro-me, aqui, à observância de regras básicas de segurança, como não admitir excessos de cargas, nem de passageiros, entre outras.
Minha intenção era poder traduzir, em palavras, o quanto do ponto de vista sentimental o Rio Amazonas significa para mim. Ao final, dei-me conta de que não se trata de tarefa fácil. Talvez me exprimisse melhor se tomasse por empréstimo os versos da canção do Paulinho da Viola: “foi um rio que passou em minha vida e o meu coração se deixou levar”.
Brasília, 22 de setembro de 2018.