Haroldo Figueira.
Dias atrás, vi postada no facebook do site Chupaosso (www.facebook.com/sitechupaosso) a foto de um segmento da Rua Marcos Rodrigues de Souza, vulgarmente conhecido como Ladeira do Mercado. As recordações brotaram fácil, até porque são muitas e vívidas as que tenho daquele logradouro, na sua maioria agradáveis, algumas nem tanto, boa parte delas, porém, relacionadas com a fase da minha infância.
Não pretendo discorrer sobre a via inteira. Circunscrevo minha narrativa a esse seu trecho inicial de pouco mais de cem metros, que vai do mercado público até a loja que outrora pertenceu ao Sr. Luiz Martins Júnior. Espaço calçado, ensombrado por vetustas mangueiras, ladeado por um belo casario, na mesma linha do que existe na vizinha Praça José Veríssimo que faz frente para o Rio Amazonas.
Dentre os prédios antigos que margeiam a rua, de dois recordo com muita nitidez: a bela obra de arquitetura do Mercado Municipal e a casa comercial Formosa Obidense, de propriedade do italiano Sr. Silvestre Savino, natural de Nápoles se não estou enganado, pessoa que, junto com outros patrícios seus, tais como os patriarcas das famílias Priante, Imbelloni, Filizzola e Ferrarri, deram grande impulso à economia local.
Detenho-me um pouco mais no sobrado que, ao mesmo tempo, servia de residência à família Savino (andar superior) e de sede da empresa Formosa Obidense (andar térreo), para fazer alusão a um pequeno compartimento, contíguo à loja e que fazia parte da mesma edificação. Ali funcionava a barbearia do Laurentino, especializada no atendimento a clientes do sexo masculino, meninos inclusive, muito frequentada por mim e por meus irmãos.
Pessoa bastante conhecida na comunidade, Laurentino era um sujeito conversador, bonachão, gozador, bem informado. Pela boca do barbeiro sabia-se de tudo que de novo se passava na cidade. Experiente no manuseio da tesoura e da máquina zero, costumava deixar a cabeça da meninada quase que completamente pelada – só ficava de pé um tufo na parte superior.
Isso porque, à época, vigorava para a garotada o corte estilo militar e quase nenhum moleque escapava dele. Ressalte-se que se vivia em um período no qual longas cabeleiras para homens não eram socialmente bem vistas, preconceito que, alguns anos depois, os movimentos rebeldes dos anos 1960, Beatles entre os seus expoentes, encarregar-se-iam de derrubar.
Subir e descer aquela ladeira diariamente, não raro mais de uma vez, fazia parte da rotina da maioria dos habitantes da comunidade. É que a rua dá acesso tanto ao mercado público onde os moradores se abastecem de carnes, frutas e verduras, quanto à parte da beira-rio onde embarcações de pequeno porte, canoas na maioria, costumam atracar para vender seus carregamentos de pescado.
Acredito que, atualmente, não haja problemas de abastecimento de carne bovina na cidade. Houve, todavia, um tempo em que se conviveu com escassa oferta desse importante item alimentar. A produção do município não era suficiente para atender às demandas interna e externa – os pecuaristas preferiam vender o boi em pé para outros centros regionais importadores. O racionamento, administrado pela Prefeitura, tornava-se inevitável. Cada família podia adquirir, basicamente, uma cota correspondente a dois quilos do alimento, assegurada mediante a aquisição prévia, no interior do velho mercado, de cartões de cartolina com as quantidades impressas à tinta.
A venda desses cupons, programada para o início da tarde, gerava longas filas, onde se misturavam adultos e crianças (meninos de oito a treze anos, na maioria). Sem organização e fiscalização adequadas, os menores acabavam tornando-se alvos das provocações e das brincadeiras - algumas de mau gosto - dos mais velhos, entre as quais se incluía a famigerada distribuição de “culhacos” e “selos”. Para quem não sabe, “culhaco” consistia em uma espécie de lambada aplicada com o dedo indicador, de trás para a frente, em uma das orelhas. Já o “selo” correspondia a um tapa desferido na parte posterior da cabeça, um pouco acima da nuca, atingindo justamente a área tosquiada pela ação das máquinas zero de barbeiros como o Laurentino.
Vencida a etapa da aquisição dos cartões, uma outra, um pouco menos sofrida, mas ainda assim fatigante, aguardava os garotos horas depois. Começava por precisarem acordar por volta das 03:00 horas da manhã – um senhor padecimento para quem se encontrava no melhor do sono – e, de cesta de cipó nas mãos, deslocar-se com o dia ainda escuro até o mercado e, ali, enfrentar nova e apertada fila, desta vez diante dos talhos do Chico Preto e do Teodoro, a fim de trocar os tickets adquiridos na véspera por carne.
Assinale-se, no entanto, que, para a molecada ativa e disposta de então, nem tudo constituía sacrifício na missão que cumpriam a mando dos pais. Desfrutavam, também, de momentos de alegria e descontração. Estes se materializavam na animada interação com antigos e novos amigos da mesma faixa etária; e nas gargalhadas que dava ao ouvir as anedotas e piadas contadas pelo pessoal de mais idade.
Ademais, superado o empurra-empurra até ser finalmente atendido pelo magarefe, e já com a carne guardada no interior da cesta, nada como dirigir-se ao box da dona Ana e forrar o estômago com uma boa cuia de mingau de farinha de tapioca, de arroz ou de banana grande verde, preparado com muito leite, antes de encarar a subida no caminho de volta para casa.
Óbidos é uma cidade de traçado viário acidentado. Várias são as ruas que apresentam aclives ao longo de suas extensões. Deve-se a essa topografia peculiar o surgimento da tese, bastante antiga por sinal, que atribui ao hábito de subir ladeiras o fato de as moças obidenses possuírem pernas grossas e bem torneadas. O intrigante é que, quando penso no assunto, não consigo associá-lo a outra via pública íngreme que não seja a Ladeira do Mercado. Familiaridade com o pedaço de chão? Sentimentalismo? Quem sabe as duas coisas.
Foto de João Canto (2005)