Célio Simões (*. )
Passando uma vista na edição de hoje (25.01.19) no jornal O Liberal, detive-me na coluna assinada na interinidade pelo meu estimado confrade na Academia Paraense de Letras, o professor João Carlos Pereira, notando que o brilhante colunista divulgou com destaque a comemoração urdida pelo Silogeu Paraense, visando celebrar o centenário de nascimento de Ildefonso Pereira Guimarães, grande personalidade literária do século XX e orgulho de seus conterrâneos obidenses, conquanto tenha ele nascido – apenas por força das circunstâncias – na cidade de Santarém.
Quem lê a sua magnífica crônica “Obidos Revisitada”, no livro “SOMBRAS DO ENTARDECER” (Editora Paka-Tatu, 2004), chega à serena conclusão que o debate sobre sua verdadeira naturalidade (ele é santareno ou obidense?...) soa ociosa, eis que não remanescem dúvidas sobre dois fatos incontestes: O solo mocorongo lhe serviu de berço e a velha Pauxis para onde ele retornou com apenas nove meses, palco de seus amores na juventude e cenário de suas mágicas narrativas, foi definitivamente adotada como sua legítima terra natal.
Há precedentes desse nobre sentimento d’alma em toda parte e por lá mesmo. A professora Córa da Silva Simões, por exemplo, mestra que ao longo da vida alfabetizou incontáveis gerações e colecionou homenagens tocantes (como a que lhe prestou a Prefeitura Municipal ao ensejo dos seus 300 anos e a mais bela, de iniciativa do Colégio São José, ao outorgar-lhe o título de “Símbolo das Educadoras Obidenses”), nasceu em Manacapurú. Em vida, a querida educadora jamais admitiu ser amazonense, origem revelada apenas quando manuseava seus documentos de identificação. Sinval de Nazareth Teixeira Dias, que por décadas abrilhantou com seu carisma e edificante atuação o mundo esportivo, cultural e social de Óbidos, a quem legou com sua Adalgisa uma numerosa e bem-amada prole, é mesmo de Abaetetuba? Felizmente ainda vivo e lúcido, é bom perguntar-lhe sobre isso...
E quantos mais não são assim, aqui, lá ou alhures? Permito-me, a propósito, alinhavar por amostragem outras situações pontuais: O saudoso “Dete”, genitor da estimada “Jota” do meu compadre José Antônio, que anonimamente tanto fez pela Cidade Presépio, é mesmo nordestino? Também filho de nordestino, meu pai Francisco Lôbo, que pegava pião na unha pelos valores, interesses e questões pauxiaras, nasceu em plagas jurutienses. E os portugueses, judeus, italianos e religiosos alemães que a adotaram? Prefiro parar por aqui para não ouvir poucas e boas antes de perguntar para a dileta advogada Fátima Canto se ela ainda se considera paraibana... Porém, deixo com o próprio Ildefonso (“Sombras do Entardecer”, pg. 111/114), a palavra final sobre esse superado tema:
“E assim me vou indo eu, de reencontro em reencontro, aspirando antigos e saudosos ares; revendo, de uma distância de oito décadas, a magia eternar do velho rio, tantas vezes percorrido, vivido e desbravado nos louros tempos da mocidade. Transpondo cidades tantas, e quantas vezes transitadas: Curralinho, Gurupá, Almeirim, Prainha, Monte Alegre. A gloriosa Santarém, onde o destino me fez nascer, hoje garbosa segunda capital do Pará, que nesta especifica viagem tive a oportunidade de percorrer durante toda uma jornada, enquanto nosso navio, o “Santarém”, descarregava dia inteiro na sede de sua empresa de navegação, a tradicional Marques Pinto que vem, parece, dos magnos tempos da borracha. Deu até vazão para uma olhadela de pássaro na cinematográfica Alter-do-Chão.
Já a minha Óbidos, tão ansiada, só fomos chegar no início da madrugada de 22 de julho (...). Aí a saudade começa a se dessedentar na contemplação de todo um revoar de velhas recordações. Como num sonho bom, elas se vão desdobrando aos olhos e ao coração(...). Ah! Óbidos, dos meus sonhos de juventude, amores e sentimentos primaveris! Como foi bom te rever cada vez mais fagueira, renascendo em outros corações como na melodia de Chaplin, antes que cheque o dia em que sejas para mim a derradeira lembrança, percorrida na última memória em toda a tua graça e plenitude.”
Santarém faz parte dos anos dourados da minha juventude, com sua deslumbrante beleza natural, seus escritores, cantores, seresteiros, músicos e poetas, onde construí amizades sólidas e duradouras, onde a cada regresso sinto a alma em festa, mesmo porque é o berço da minha amada esposa. O meu respeito e o meu apreço pelos santarenos me faz confiar a um deles - Nicodemos Sena - jornalista, bacharel em Direito pela USP, romancista brilhante que escreveu a premiada obra “A ESPERA DO NUNCA MAIS – UMA SAGA A-MAZÔNICA” e “A NOITE É DOS PÁSSAROS”, valoroso caboclo comparado pela crítica especializada a monstros sagrados da literatura universal como Graciliano Ramos, João Ubaldo Ribeiro, Mário de Andrade e Érico Veríssimo, com o conhecimento de grande amigo e prefaciador do homenageado no livro acima citado, a tarefa de falar sobre o saudoso aniversariante, o que ele fez outrora de maneira magistral no texto divulgado por “OEstadoNet”, em 05.09.2013, intitulado “O SÉCULO DE ILDEFONSO GUIMARÃES”, que a seguir transcrevo:
“Tenho aqui em minhas mãos uma verdadeira preciosidade. Trata-se de um exemplar do livro de contos “Senda Bruta”, de Ildefonso Guimarães, publicado em 1965 pela Gráfica Falângola Editora (Belém, PA). Ildefonso Guimarães já havia publicado, em 1961, “Histórias Sobre o Vulgar”, mas foi com os oito contos de “Senda Bruta” que esse genial escritor paraense definitivamente se inseriu no quadro da Literatura da Amazônia. Esse livro ganhou, em 1963, o Prêmio Samuel MacDowell/Governo do Estado do Pará, promovido pela Academia Paraense de Letras. As orelhas trazem excertos dos pareceres da comissão julgadora, formada por Cândido Marinho da Rocha, Ápio Campos e Sílvio Meira. Roberto de La Rocque fez a ilustração da capa e Acyr Castro, o prefácio.
O exemplar vem autografado pelo próprio Ildefonso Guimarães, nos seguintes termos: “Para o singular autor de ‘A Espera do Nunca Mais’, um marco de fim de século na literatura da Amazônia, esta desbotada ‘Senda Bruta’, com muita admiração e apreço. Fraternalmente, o autor – Ildefonso Guimarães. Ano de 1999.” Conhecemo-nos, eu e o Ildefonso, durante a Feira Pan-Amazônica de Literatura de 1999, quando lhe presenteei com um exemplar do meu “A Espera do Nunca Mais”, lançado nesse grande evento literário, recebendo eu, dias depois, como gentil retribuição, esse raro exemplar de “Senda Bruta”. Ildefonso Guimarães, como artista da palavra e como pessoa, é um autêntico monumento da cultura paraense; monumento que um dia haverá de ser revelado ao Brasil e ao mundo.
Pois reconheço que Ildefonso Guimarães, ainda que eu divirja de muitas de suas opiniões sobre os homens e o mundo, é uma daquelas figuras cuja imagem e palavras não cessam de ecoar na alma de quem (como eu) teve a ventura de conhecê-lo pessoalmente. De 1999, quando se deu o nosso primeiro encontro, até 2005 (ano de seu falecimento), eu e Ildefonso tivemos vários encontros pessoais e inúmeras conversas ao telefone (e mesmo por “e-mails”, pois Ildefonso, embora fosse um “homem do século XX”, rapidamente se adaptou à comunicação cibernética).
Lembro-me, como se fosse hoje, da visita que lhe fiz em sua casa, localizada na Travessa Alenquer nº 139, no bairro da Cidade Velha, Belém. Nesse dia (na verdade, nessa tarde) tivemos uma longa conversa, alimentada pela mútua admiração. Eu gravei (ainda em “fitas cassete”) essa nossa conversa e, assim que saí da casa de Ildefonso Guimarães, passei para o papel o que ele me havia falado, enviando-lhe, dias depois, cópia da transcrição, com base na qual, ao que parece, ele teceu uma crônica que foi publicada em “A Província do Pará” (30/12/2000).
E eis que hoje reencontro o resumo dessa inesquecível conversa dentro do precioso exemplar de “Senda Bruta”, o qual ganhei de Ildefonso nessa visita que lhe fiz em sua casa, treze anos atrás, e que só agora utilizo nesta crônica. A seguir, transcrevo o referido resumo, procurando mantê-lo o mais próximo das anotações originais. Com tais reminiscências, espero fornecer um roteiro interessante e seguro para quem quiser se aprofundar na vida e na obra dessa grande personalidade literária do século XX, em nossa Amazônia:
RESUMO DA CONVERSA:
“Sabe, Nicodemos, nasci nos primeiros albores do meu século (1919), logo após terminada a primeira Guerra Mundial; na época em que davam as cartas, no Brasil, os famosos Pessoa da Paraíba: Epitácio, na Presidência e João no Estado de ‘muié macho sim sinhô’, onde seu assassinato serviria de estopim para a vitoriosa Revolução de 1930. Antes de mim e da Grande Guerra, também já houvera de importância, no século, o primeiro voo mecânico no mundo, realizado por Alberto Santos-Dumont com o 14-Bis, em 1906; a descoberta da estrutura planetária do átomo, em 1911; o naufrágio do Titanic, em 1912; a teoria da relatividade, publicada por Einstein em 1916; o fastígio da borracha na Amazônia entre a primeira e a segunda década, e a revolução bolchevista de 1917, que flagelou o grande povo russo e manteve o mundo em perigo por mais de 70 anos.”
“Sabe, Nicodemos, sou um produto da terceira década do século, a dos 30. Foi nela que despertei para a existência, quando me lembro vagamente de ter assistido, em Óbidos, à primeira grande festa de minha vida; tinha então três anos de idade: a do centenário da independência política do Brasil, em 1922 (hoje posta ameaçadoramente em perigo). Nessa década,começavam também as maravilhas da centúria; o nascimento da televisão eletrônica, em 1923 (matriz da atual globalização), o surgimento do cinema sonoro em 1928 (assisti ao seu debut em Portugal em 1931) e a descoberta da penicilina, por Fleming no mesmo ano (28). A dos 30 iniciou-se com a construção do primeiro microscópio eletrônico (1932) mas terminou com a hecatombe da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que manchou a história da humanidade com o genocídio de seis milhões de judeus na Alemanha e o extermínio de fulminante de 300 mil pessoas em Hiroshima, com o lançamento da primeira bomba atômica.”
“Mas se os anos novecentos foram o século de Hitler, de Fidel Castro, de Francisco Franco, de Joseph Stalin, de Benito Mussolini, de Augusto Pinochet, de Sadam Hussein, de Mao Tse Tung, do ayatolá Khomeini e de tantos outros dragões da maldade que o enfearam com sua tábida existência, foi também o do Mahatma Gandhi, o de Charles Chaplin, o de João XXIII, o de Frederico Garcia Lorca, o de Madre Teresa de Calcutá, o de Gabriel García Márquez, o de Betty Davis e ainda o dos nossos modestos mas não menos santos guerreiros Chico Xavier e Irmã Dulce; seres humanos que iluminaram nossa centúria com sua arte, sua bondade ou seu humanismo contagiante. Num balanço entre perdas e lucros o saldo positivo do século XX é de notória evidência: o nascimento do computador (o cérebro artificial que revolucionou a vida no planeta), em 1946; a descoberta da estrutura do DNA (que está levando o homem ao mistério de sua origem), em 1953; a criação do raio laser e sua magia multifária, em 1960; a primeira conquista do espaço pelo homem (o russo Iuri Gagarin) em 1961; o pouso do primeiro ser humano na Lua ( o norte-americano Neil Armstrong), em 1969; a maravilha do micro-computador, em 1981; o mapeamento dos genes humanos, em 1983, e o primeiro clone de um ser vivo, a ovelha Dolly, em 1997.”
“Pessoalmente, Nicodemos, não tenho do que me queixar de meu Século da Luz; se não me deu riquezas, berço de ouro, celebridade ou algum dos chamados ‘bens de raiz’, me manteve em seio sempre aconchegado, ao abrigo de grandes intempéries; a mente livre e a alma saída. Deu-me tudo o que eu precisava para fruir a vida: a capacidade aguda de senti-la, a acuidade de entendê-la em sua plenitude e a humildade de coração para aceitar os seus acertos e os seus revezes.”
“Sim, Nicodemos, sem nunca possuir de meu mais do que o dia e a noite, o século XX me proporcionou instantes os mais inauditos e inesquecíveis. Menino ainda, levou-me através do Atlântico por 19 dias entre céu e oceano até o avistar fantástico da encantadora Ilha da Madeira: primeiro um vago vulto crescendo na neblina, depois todo um esplendor de existência humana surgido do mar. Em seguida, a Europa (Portugal) e sua gente civilizada e antanha.
Passados mais três anos, me traz de volta ao Brasil e me fez ingressar na vida militar, onde cursei cidadania, aprendi a amar a minha Pátria, e a respeitar o direito dos meus concidadãos. Servindo ao Exército conheci as nossas fronteiras do extremo norte, suas vizinhanças hispânicas, costumes, diferenças lingüísticas e o amálgama das etnias que as povoam.”
“Mais um quarto dele mesmo decorrido, meu século me traz de retorno à vida civil e faz abrirem-se para mim panoramas inconcebíveis: como o do ingresso na área jornalística, através de ‘A Província do Pará’ (administração Milton Trindade); a travessia aérea do Pacífico, a convite do governo japonês (10 horas de voo ininterrupto) em viagem ao Extremo-Oriente, visitando o fantástico Japão e seu povo maravilhoso, com quem convivi duas semanas inolvidáveis da mais consumada civilização e apuro racial. A América do Norte, a voo de pássaro: dois dias em New York (de lambuja, na volta, uma hora no Havaí), duas em Los Angeles, uma tarde em Miami, após o que seguiram-se nove anos de serviço público federal que me levaram por esses Brasis a fora visitando em serviço cidades como Recife, Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza, Rio Branco, Macapá, Manaus (esta, velha conhecida dos tempos militares).
Foi para mim tão pródigo, esse período solar da vida, que nele me tornei Grão-Mestre da Maçonaria no Pará (a mais alta dignidade alcançada na vida iniciática de um franco-maçom), e fui aceito como ‘sócio efetivo e perpétuo’ da hoje secular Academia Paraense de Letras. Certa vez, em Brasília, cheguei a ser apresentado a Pedro Aleixo, então vice-presidente da República, como um dos bons escritores da Amazônia. Acabei, inclusive, virando verbete (nome e obras) na ‘Enciclopédia da Literatura Brasileira’, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza e hóspede de seis páginas na ‘Enciclopédia da Cultura Amazônica’, de Carlos Rocque. Duas obras imarcescíveis do século de Freud, ‘além da alma’. Tudo isso me deu, como num conto de fadas, o meu querido século XX; uma vida intensa e repleta de experiência humana. Portanto, depois que ele se for, quando também chegar a minha vez, já posso me ir em paz; coração satisfeito pela glória de tê-lo acompanhado até seu último instante. Não teria ele assinalado também o apogeu da raça humana? Quem sabe!”.
A amizade de Ildefonso Guimarães foi algo que muito me dignificou e dignifica, de maneira que foi para mim, como se diz, uma “subida honra”, ter merecido o privilégio de ser convidado por Ildefonso a prefaciar o seu último livro, “Sobras do Entardecer” (Editora Paka-Tatu, 2004). Meses depois, Ildefonso Guimarães partia para as regiões celestiais deixando-nos com imensa saudade”.
Ao concluir a leitura desse texto tão belo e espontâneo da lavra do grande Nicodemos Sena, não creio que a municipalidade, a imprensa, as escolas, as entidades culturais e o próprio povo obidense que tanto inspirou suas obras, dentre elas o épico “OS DIAS RECURVOS” que bem poderia virar filme, se permitam o descuido de deixar passar em branco, sem um único gesto de singela celebração, os cem anos de um dos seus mais ilustres filhos, “o maior ficcionista da Amazônia” na opinião isenta do acadêmico Acyr Castro, que ao longo da vida empenhou-se a alardear sem falso pudor o seu imenso amor por Óbidos. Se incorrerem porém nesse grave deslize, este registro mitigará pelo menos em parte, o lamentável, absurdo e injustificado olvido.
(*) Advogado, escritor e membro da Academia Paraense de Letras.