Fernando Canto.
O Corifeu, Mestre do Coro, narrava minha história, atrás dele cem sátiros e cem faunos coralizavam o canto dos meus amores e da minha trajetória. Era um canto arrebatador, tumultuário, mas belo e forte, que aparentemente agradava a Baco, refestelado ali em seu sofá de mármore, e às muitas mulheres de ancas perfeitas que me deram companhia e filhos. O meu querido deus da orgia iniciava uma bacanal comendo cachos de uvas e sorvendo vinho puro, agora ao lado de oito bacantes em poses eróticas se movimentando em uma enorme poltrona semicircular.
Meu delírio ultrapassava a escadaria de pedras do anfiteatro iluminada por tochas, sob o entusiasmo dos expectadores tão bem vestidos com suas túnicas de linho bordadas nos extremos. Gritavam ensandecidos a cada verso sobre minha vida.
Enquanto o Corifeu cantava em êxtase eu fazia minhas libações ao deus com vinho servido em uma taça de prata, onde se podiam ver desenhos ricamente decorados de fino ouro. O ditirambo seguia seu roteiro e eu me maravilhava com tudo aquilo. Jamais pensei em tornar tão pública a minha biografia e nem pensava que o próprio Baco comparecesse em meus domínios para assistir aquela peça tão bonita que falava de mim como protagonista, como ser humano e mortal.
Ao fundo da taça, ao fim do prazer do vinho puro, ainda excitado, li, de relance, a frase: “contra malum mortis non est medicamentum in hortis” (contra o mal da morte não há remédio nos jardins).
Antes de beber o último gole, olhei em volta com meus olhos de leal adorador, o rosto cínico de Baco me observando. O imortal untuoso me saudava lançando perceptíveis faíscas ferinas sobre mim, provavelmente achando que eu queria, como ele, viver para sempre. Eu, então, caí envenenado, tentando desesperadamente respirar.
Acordei séculos depois na Amazônia em um banho ritual de flores perfumadas e folhas de ervas. Era noite e a lua brilhava no rosto sereno de minha mãe. Eu ouvia seu balbuciar de preces e recebia com carinho suas mãos curando minha asma e tirando meus quebrantos que tanto faziam mal à minha sobrevivência de criança ribeirinha desassistida. Por isso eu memorizei esse meu tempo antigo e o decorei com o coração para me proteger dos perigos do mundo e nunca mais esquecer os males incrustados no olhar dos poderosos, que um dia me envenenaram com suas invejas e mentiras.
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