Jorge Ary Ferreira.
Por volta da metade da década de 80, passava umas férias de julho em Óbidos, logo no início da festividade de Sant´Ana, para ser mais preciso, na segunda-feira da primeira semana de festividade. Saía de casa por volta de 20:30 da noite, para marcar o famoso bingo no Cliper de Sant´Ana, encontrar com os amigos... E, costumava sair pelo portão da garagem que ficava nos fundos da nossa casa, assim que dei os primeiros passos, vi um grupo de pessoas conversando em frente a casa do Flávio Rocha esposo da D. Lena Andrade, que se localizava também na rua Osvaldo Cruz, no quarteirão seguinte. Assim que me aproximei da turma, percebi que eram os amigos Nego Sabá, Flávio, Carlos Andrade e respectivas famílias, estavam tomando uns tragos daquela água que passarinho não bebe, mais precisamente a segunda garrafa de Rum Montilla, tirando gosto com um queijo do Reino de primeira qualidade, e eu logicamente, fui intimado a sentar com a turma e participar da rodada. Papo vem, papo vai apreciando a Cuba libre, já com umas quatro talagadas na cabeça, ouvi um estampido no rumo da praça, foi então que o Flávio disse:
- Olha, mataram o boi, já vão curar.
Nego Sabá virou para o Michel, o filho mais novo do Flávio, um exímio negociador, e disse:
- "Dolar", era o seu agrado, corre lá na praça, vê quem é o dono desse boi e contrata para fazer uma apresentação aqui.
As esposas se olharam, quiseram dar para trás, até que se deram por vencidas. O Dólar saiu no pique no rumo da praça, demorou um pouco, depois da apresentação ainda serviram aquela famosa merenda para os componentes, nisso veio o terceiro tubo de Rum, até que o tambor voltou a rufar, já por volta das 22hs., horário avançado para os costumes da nossa Óbidos. O som foi ficando cada vez mais próximo, ai eu me animei, há muitos anos não via o boi dançar, desde os tempos do Três Almas. Sentei em uma janela do antigo IBGE com a minha dose de cuba e o boi entrou no terreiro, chegou dando aquela meia volta.
... e boa noite dono da casa, com o vai como passou, eu vim trazer o boi famoso para o senhor ver dançar....
Nisso a vizinhança percebendo que o boi iria se apresentar, trataram de trocar o camisão por um vestido melhor e vieram para as portas, Catarina e Vicentinha agasalharam D. Nicota Florenzano, já com as articulações debilitadas, naquela cadeira de vime. Na outra casa, a garbosa Gigi, ainda novona, Eulina e Koló Souza já com certa idade. O certo é que em pouco tempo a rua estava cheia, a plateia acompanhava cantando junto.
Carlos Andrade, chamou um vaqueiro, passou um trocado para a mão do moleque e disse:
- Me aluga esse alazão.
O moleque prontamente, apeou do cavalinho e novo vaqueiro assumiu, só que o quadril do novo componente dava três do moleque, assim mesmo ele deu um jeito e assumiu o papel... o amo não repetia música.
- Foi, foi, foi, foi iaiá quem me mandou, tomar água numa cuia...
Um gritava:
- Vai buscar uma cuia pra gente tomar uma.
Lá vem cuia para a roda, tomou o Amo, Cazumbá, D Maria, Mãe Aurora..., e a cuia com Rum rodava, e o boi dançava... até que por volta de meia noite, chegou a matança. Pai Francisco com sua cartucheira, uma 36, porém com cartucho descarregado, porque saíram de casa preparados somente para uma apresentação, cantou a parte dele:
- Eu sou caçador afamado que vem lá da cabeceira, hoje eu mato esse boi seja lá de que maneira.
E a fila respondia:
- Não caçador, faz pena faz horror, não mate nisso boi que meu amo criou.... só que na hora do tiro ele fez com a boca, "peiii".
Os contratantes se olharam e o Flávio pediu a palavra:
- Repete aí essa parte do caçador, tem que matar esse boi direito, a turma prontamente:
- Eu sou caçador afamado...
Nisso o Flávio entrou na sua casa, quando voltou foi com uma espingarda Stevens americana, calibre 16 cano longo, carregada com um cartucho caseiro que o velho Lalor preparara com uma sobra de pólvora preta que lhe restou da guerra do Paraguai, com chumbo 3t para atirar em anta nos campos gerais, embuchado com papel burro de embrulho na taberna. Quando a música terminou, o novo caçador deu um grito:
- Urra meu boi!
E detonou a velha garrucha no rumo do céu.
Saiu uma língua de uns três metros de fogo, a fuligem cegou a plateia, um estampido tão forte que espantou téo-téo no mondongo. Eu nunca imaginei que um susto fosse tão bom para artrose. D Nicota levantou da cadeira e levou a Vicentinha e Catarina no peito, a Koló deu um duplo mortal carpado, caiu no pescoço da Gigi, em questão de segundos, só restamos nós e o cavalinho esquartejado no chão. Recolhemos as tralhas rápido, cada um foi pra sua casa temendo confusão.
No dia seguinte, o Nego Sabá distribuía seu pão na cidade nova, encontrou o dono do boi.
- Poxa parceiro, vê lá o que a gente te deve, tem que fazer reparo no cavalo, eu quero ajudar com essas despesas...
Ele disse:
- Não seu Sabá, deixe, no ano que vem o senhor me ajuda, esse ano não dá mais, o boi sumiu, a Catarina não sabe o paradeiro do Pai Francisco, é índio espalhado nessa mata da Serra, pai querendo saber de filho, deixa eu procurar meus componentes...