Por Pe. Sidney Augusto Canto.
A devoção ao Bom Jesus é muito comum no Pará. Existem relatos de sua existência em Belém, Vigia (Bom Jesus dos Passos), Cametá (Bom Jesus dos Aflitos), São Caetano de Odivelas (Bom Jesus dos Navegantes), Monte Alegre e também na nossa querida cidade de Óbidos.
Sabemos que duas capelas dedicadas a Bom Jesus ornam a história de Óbidos. E as duas construções se confundem, por vezes, nos relatos históricos. Vejamos o que alguns textos do passado nos dizem a respeito de ambas.
Muito antes da Cabanagem, quando Óbidos ainda era uma Vila, três homens cometeram o sacrilégio ato de roubar a âmbula do Sacrário da antiga matriz e espalharam as hóstias aos pés da colina sobre ao qual se edifica a cidade de Óbidos. No lugar onde os sacrílegos abandonaram as hóstias consagradas foi construída uma capela dedicada ao Bom Jesus, em desagravo pelo sacrilégio. Por isso, a capela também era conhecida como a capela de “Bom Jesus do Desagravo”. Esse fato é conhecido e citado em crônicas do século XIX, tanto por José Veríssimo como pelo cônego Francisco Bernardino de Souza. Vamos nos valer do que diz o cônego Francisco, no ano de 1873:
Na pequena collina em que está assentada a cidade de Óbidos, ainda vêm-se os restos de uma capellinha dedicada ao Senhor Bom Jesus.
Fica-se triste ao contemplar aquellas ruinas, que o matto espesso e cerrado tem já invadido e que attestam a fé e a piedade d'essa geração, que já se foi.
Ao lado da capellinha havia um cemiterio, onde iam descançar aquelles que cahiam vencidos n'esse longo combate travado com o mundo. Hoje não existe mais o cemiterio. O rio, alluindo pouco a pouco a terra, ia desmoronando a collina e os ossos, d'aquelles que ali dormiam, julgando-se á coberto dos contratempos e vaivens do mundo, eram arrebatados pelas aguas e sepultados na voragem do rio.
Ainda ali dormem alguns craneos, ainda ali existem alguns ossos, que serão arrebatados como os outros no torvelinho das aguas, si de lá não forem arrancados pela piedade dos vivos.
Muitas lendas cercam a existência, tanto desta capela, como do cemitério em questão, que era o campo santo mais antigo da cidade, datado do início do século XIX. Diz uma história corrente em Óbidos, relatada pelo mesmo cônego Francisco, que o pároco da freguesia obidense na época do sacrilégio, era o padre Raymundo Antônio Martins; um homem dado a política e, por isso mesmo, tinha seus inimigos locais. Foram estes inimigos que furtaram a Igreja e cometeram o sacrilégio. Tristes fins tiveram, segundo o relato do cônego:
E os sacrilegos foram punidos... O povo apontava-os e Deus quiz dal-os perfeitamente a conhecer. Nenhum d'elles morreu em sua cama morte tranquilla em meio das bençãos da familia reunida... nenhum... Um delles morreu coberto de lepra; todo o corpo lhe era como uma chaga viva; o outro morreu soltando uivos terriveis e o terceiro acabou affogado no Amasonas, de modo que o seu corpo não repousa em lugar santo á sombra da cruz ...
Em 1835, a Cabanagem eclodiu na Província do Grão-Pará. A cidade de Óbidos voltou-se novamente para o Bom Jesus, para que a Vila não sofresse com as tensões políticas que assombravam o interior da Província. Como a primitiva capela estava construída em local suscetível ao triste fim das construções da margem do rio Amazonas e ser engolida pelas águas, o povo fez a promessa de construir uma nova Igreja, dedicada ao Bom Jesus. Desta vez a capela seria construída em local mais elevado, que pudesse ser sinal perene da gratidão do povo ao seu Salvador.
Passada a Cabanagem, houve desistência das pessoas para se construir uma nova capela. Muitos que haviam prometido ajudar voltaram atrás de seu voto e as coisas ficaram sem andamento. A antiga capela, que havia inclusive servido de Matriz da Paróquia, antes da construção da atual igreja de Santa Anna, continuava a se deteriorar pela ação do rio Amazonas e, apesar de um ou outro obidense possuir boa intenção, a construção da nova igreja não foi adiante.
Em 1855, entretanto, grassou a peste da cólera pela cidade de Óbidos. Várias pessoas foram acometidas pela doença. Muitas pessoas morreram. A epidemia atingiu em cheio diversas famílias, sem acepção de ricos ou pobres. O Bispo do Pará pediu que o povo confiasse em Deus e incentivou as devoções pias para que a peste fosse contida pelas forças divinas. O povo de Óbidos novamente se apegou ao Bom Jesus para que viesse em socorro dos devotos obidenses que padeciam da epidemia.
Passada a peste, mais ou menos no mês de setembro de 1855, o povo começou a construir a nova igreja, em um terreno alto, situado nos confins da agora cidade de Óbidos. Abriu-se um largo. Foram feitas subscrições e cada um doava o que podia em suas condições. A Igreja foi construída apenas com os donativos do povo, sem as doações que o Governo da Província costumava dar para a construção das igrejas paroquiais. Ficou decidido que a cada mês de setembro o povo faria uma grande festa e um arraial que serviria para arrecadar recursos.
Antiga Capela de Bom Jesus
E a capela foi levantada e chegou a ser coberta. No entanto, as divisões políticas levaram a paralização das obras. Em 1859, Robert Avé-Lallemant informava que a capelinha inacabada era “visitada e habitada por urubus”. E a construção ia andando a passos lentos. Em 1868, Domingos Soares Ferreira Penna, Secretário da Província do Pará, nos dá mais notícias da capela:
A capella de Bom Jesus, no alto da praça do mesmo nome. Não está acabada e não tarda a desabar. Chegou quase a concluir-se, tendo sido feita à custa de uma subscripção dos moradores no anno de 1855 em cumprimento de promessa que fizera o povo 20 annos antes por ocasião da devastação dos cabanos. Informaram-me que já esteve coberta, mas que tiraram-lhe toda a telha e madeirame que foi applicada em proveito particular.
Parece que a repercussão do Relatório do Secretário do Governo, falando do uso do material da Igreja para bem “particular”, levou o povo obidense a retomar novamente os brios e a concluir a Capela. Ela era composta de uma pequena nave e altar, possuía duas pequenas torres e um alpendre coberto que servia de nave para o povo, principalmente nas grandes festas. As festas do Bom Jesus, realizadas no mês de setembro, até a primeira metade do século XX eram muito famosas em toda a região. José Veríssimo, obidense nato, fundador da Academia Brasileira de Letras, dizia, em 1877, quando a capela já servia ao culto divino, que esta festividade em honra do Bom Jesus era “muito concorrida e brilhante, a que a vaidade bairrista dos obidenses chama uma Nazaré pequena”.
Em 1890 a capela serviu como palco de um fato político interessante. Vivia o povo de Óbidos o advento da República. Muitos liberais e anticlericalistas faziam forte oposição política aos católicos. Isso levou o padre Augusto João Maria Cullérre aproveitar a festividade do Bom Jesus, em setembro daquele ano, para promover a fundação, no “perystillo” da capela, de um partido político que acolhesse as lideranças católicas que estivessem dispostas a lutar contra os ataques políticos que sofria a Igreja Católica. Essa é apenas uma das muitas histórias que cercam o passado da pequena igreja.
A capela faz parte, hoje, do complexo que abriga, hoje, a Cúria Diocesana e o antigo Seminário. A pequena ermida já sofreu muitas reformas ao longo dos anos, perdendo uma parte de suas linhas originais. Mas, talvez a maior perda, seja a da imagem do padroeiro, o Bom Jesus, que muito já socorreu os obidenses em suas necessidades, e que não se encontra no interior da sua capela. Atualmente, a imagem do Bom Jesus se acha na Catedral de Santa Ana. Quem a vê, talvez não imagine a importância que já teve no passado do povo que ora sofre nova epidemia e que pede a proteção do Bom Jesus do Desagravo para superar as dores que vive no tempo presente. Que o Bom Jesus volte a olhar para o povo obidense com o grande amor do seu coração e nos livre da pandemia que ora nos aflige.
FONTE: Blog do Pe. Sidney Canto