TERÇA DA CULTURA POPULAR: “Sangue de Barata”

TERÇA DA CULTURA POPULAR: “Sangue de Barata”

Célio Simões (*)

Dizemos que alguém que tem “SANGUE DE BARATA” quando a pessoa não reage a provocações ou situações desagradáveis, conseguindo ficar calma até nas horas mais difíceis. Trata-se de pessoa com "sangue frio", e olha que nem mesmo sangue essa bicha asquerosa tem.

É que a barata, assim como a maioria dos insetos, não tem sangue e sim possui um nauseabundo fluido chamado hemolinfa, que é transparente e não apresenta pigmentos. Dizem que o sangue é o condutor da nossa sensibilidade ao coração e assim, a pessoa com "sangue de barata" é fria e insensível, já que o inseto não possui o sangue "tradicional" que corre quente em nossas veias.

Dentro desse contexto, após agredir um torcedor, um jogador de futebol procurou justificar seu reprovável gesto dizendo que foi insultado antes e depois do jogo e dentro do esperado, reagiu:

- “Ele ofendeu minha irmã e eu parti para cima dele, pois não tenho sangue de barata”.

Natural de Caracaraí em Roraima, Marília Tavares iniciou na carreira artística ainda criança, com quatro anos de idade, quando cantava em eventos religiosos e culturais em sua cidade natal. Veja-se o trecho do texto poético de uma de suas canções, denominada justamente de “Sangue de Barata”:

Eu não consigo
Tampar a boca da minha raiva
Mandar o olho devolver a água
Pra ser plateia do meu ex-te-amo
Tem que ter sangue de barata.

Uma coisa que eu não tenho é sangue de barata, viu?

“Sangue de barata” inspirou também o nome de duas outras obras literárias, sendo uma de Sandra Paterno e outra de Martha Medeiros, demonstrando que essa expressão cultural fez parada na literatura e na música, assim nos meios eruditos e populares.

Sandra Paterno, natural de Ariranha (SP), escritora, gestora digital, psicopedagoga clínica e educacional, especialista em educação especial, pedagoga, compositora, palestrante e artista, imprimiu em seus muitos livros fortes ingredientes de psicologia e humor.

“Sangue de Barata” é um dos livros dessa magnífica autora paulista que explora a psique de quem afirma não ter sangue de barata, daquele tipo de gente que não levam desaforo para casa. O livro busca desvendar as camadas ocultas da personalidade e guiar o leitor para o autoconhecimento. 

Diferente da cantora de Caracaraí (RR), famosa por “não ter sangue de barata”, a gaúcha Martha Medeiros, escritora, poeta e uma das melhores cronistas brasileiras, com mais de um milhão de exemplares vendidos, notabilizou-se pelo inverso. Esclarece que "Sangue de Barata" significa que a pessoa não reage quando é ofendida, age sempre marcada pela apatia, pelo “deixa pra lá”, sentimentos recorrentes nos apreciados textos da versátil autora.

Em sua prestigiada coluna literária no GZH, Martha é coerente e confessa: "Quase tudo que conquistei na vida (desconte o exagero) foi por ter sangue de barata". Ela cita como exemplos a confiança no fato de que as pessoas cansarão se ela não der corda para suas maluquices, a sua compaixão por quem não tem condição de expandir-se, a calma diante de provocações, a tolerância com os desaforos, a paciência para aguardar e a espera da hora exata de cair fora. 

Portanto, quando nos referimos a alguém com “sangue de barata”, é o mesmo que dizer que a pessoa tem o sangue gelado, não age impulsivamente, não pega corda por qualquer coisa, não reage de bate pronto, não tem o tal pavio curto.

No Lago Grande da Franca e em todo o Baixo Amazonas no Pará, um marmanjo desafiado para resolver uma diferença pessoal “no braço” e não reage, mesmo quando palavrosamente ofendido, é inapelavelmente rotulado de “indigno”, que no exemplo dado, não tem nada a ver com falta de dignidade pessoal e sim, com a falta de disposição para a luta corporal, haja vista que naquela vasta aba de mundo, assim como no Marajó, todo moleque briga desde a mais tenra idade. E é reputado “indigno” porque tem “sangue de barata”...

Nas danças da Desfeiteira que antigamente alegravam as várzeas do Arapucú, oeste paraense, a conhecida expressão não passou despercebida dos versejadores durante os bailes juninos, em que jocosamente provocavam suas damas, para delas receber, em cima da bucha, a merecida e irreverente resposta.

O cavalheiro:

CABOCLA ESTÚRDIA E GOSTOSA

DESSE JEITO TÚ ME MATA

TE IMPLORO, CASA COMIGO

NÃO TENHO SANGUE DE BARATA...

A dama: Te enxerga pirento ...

Pensando bem, vendo os desmandos de toda ordem que acontecem à nossa volta, não é exagero dizer que o povo brasileiro tem mesmo, por índole ou atavismo, inesgotável “sangue de barata”. Basta ligar a TV para constatar os “desabusos” de quem manda e desmanda, fazendo ou promovendo toda sorte de insensatez, tudo perante uma sociedade inerte, amorfa, tolerante, contemplativa, que a tudo “presenseia” sem a mínima vontade de reagir.

(*) O autor é advogado, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Academia Paraense Literária Interiorana, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto dos Advogados do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós e da União dos Juristas Católicos de Belém. Instituto Hisistórico e Geográfico do Tapajós.

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