“ÓBIDOS – UMA SENHORA NO BERÇO!", artigo de Célio Simões em homenagem aos 323 anos de Óbidos, que acontece neste dia 2 de outubro de 2020.
Célio Simões (*)
Após uma existência tricentenária, Óbidos naturalmente se transformou em um centro de cultura na Amazônia, graças à atuação de ilustres filhos da terra, que neste espaço permito-me não nominar por serem muitos, salvo dois deles, por quem nutro especial admiração. Refiro-me a José Veríssimo Dias de Matos, expoente da crítica literária, que nos legou obras da envergadura de Quadros Paraenses, Estudos Brasileiros, Estudos de Literatura Brasileira e História da Literatura Brasileira. Não há quem não reconheça seu poder de imaginação, seu talento ímpar e sua linguagem dúctil. Poderia eu situá-lo no tempo, entre o simbolismo de Augusto dos Anjos e o modernismo de Mário de Andrade, com a ressalva de não ter ele participado da fantástica Semana de Arte Moderna de 1922, mercê de seu falecimento em 1916, aos 59 anos. Escritor de elevados méritos, seu forte, vale repetir, foi a crítica literária, que ele fazia recheada de regras discutidas e discutíveis, rica nas minúcias próprias dos gênios. Contemporâneo ao mestre, impõe-se o registro desse magnífico escritor e o maior jurista paraense que foi Herculano Marcos Inglêz de Souza, autor de vasta produção jurídica e literária, da qual destaco o imperdível “Contos Amazônicos”. A relevância desses dois gigantes mede-se pelo registro da própria História. Dos três paraenses que tiveram assento na Academia Brasileira de Letras, dois deles, justamente Veríssimo e Herculano, são obidenses. É muito orgulho...
Canhões da Fortaleza Gurjão
A pungente interrogação, não apenas dos que hoje vivem em Óbidos, mas dos “fivelas” que moram em Belém, Manaus, Santarém, Brasília, Rio, São Paulo, Macapá e até no exterior é sobre o grau de interdependência entre uma linhagem de filhos tão notórios, o status de cidade histórica e o aparente desapreço oficial pela situação presente, que salta aos olhos do visitante, para lá atraído pela fama de “cidade mais portuguesa da Amazônia”. Não temos indústria, o comércio balança na gangorra do baixo poder aquisitivo, a agricultura de subsistência carece de incentivo e a pecuária ostenta, com raras exceções, parca linhagem. O turismo, que tantos dividendos poderia render, é incipiente. Não há acomodações hoteleiras suficientes ou inteiramente adequadas a grandes fluxos de visitantes e o acesso via fluvial ainda desestimula pela demora, quando não, pelo desconforto. Até que ponto os esforços isolados de algum prefeito, na figura de quem o povo costuma depositar suas esperanças, serão capazes de modificar um pouco esta realidade? Contribuirá o trabalho conjunto da sociedade civil para o alcance do progresso que se revela inadiável ou este é que determinará a grandeza econômica, aperfeiçoando a estrutura social, quando tão remotamente pode ela influir na reformulação das regras que lhe são impostas?
Na Óbidos que neste dia dois de outubro aniversaria, a impressão é de que tudo está ainda por fazer, a começar pelo prosaico e regular fornecimento de água encanada, que apenas e esporadicamente goteja das torneiras. O extenso município situa-se no coração da Amazônia, menina dos olhos do mundo, fonte de denúncias e intrigas de pessoas e países que por razões insondáveis, vivem a ultrajá-la. Faz parte, por assim dizer, da Pan-Amazônia, que numa cosmovisão tomada de Marte, na estimativa feita por Samuel Benchimol, constitui a vigésima parte da superfície terrestre, quatro décimos da América do Sul e três quintos do Brasil, possuindo um quinto da disponibilidade mundial de água doce e a última reserva mundial de floresta nativa grandemente ameaçada pelos desmatamentos, com densidade de pouco mais de uma dezena de habitantes por quilômetro quadrado ou dois e meio milésimos da população mundial. Em território brasileiro, salvo as concentrações urbanas nas Capitais dos Estados e cidades de médio porte, remanesce um enorme vazio desafiando a capacidade humana de ocupá-la sem destruí-la, porque a terra, antes abundante, vai se tornando escassa à medida que a população aumenta.
Vista do Forte Pauxis, ao fundo a Serra da Escama
Na “Cidade Presépio” faltam recursos de toda ordem e a expectativa mais viável, enquanto por lá não for encontrada alguma riqueza de racional e sustentável exploração, será investir pesado no turismo histórico, até mesmo por congruência com as nossas raízes. Há muitos anos, a Assembleia Legislativa do Pará aprovou projeto de lei do meu dileto amigo ex-deputado, confrade e jurista Dr. Zeno Veloso, que foi sancionado, definindo os requisitos indispensáveis para que municípios do Estado fossem considerados estâncias hidrominerais ou destinos turísticos. De plano, foram arrolados, dentre outros, que no momento não recordo, Salinópolis, Peixe-Boi, Bragança, Monte Alegre, Vigia, Santarém e Óbidos, assim como alguns distritos como Alter-do-Chão, Mosqueiro, Crispim, Marudá, Icoaracy e Algodoal. A mencionada lei permite a liberação de verbas especiais indispensáveis ao desenvolvimento e à preservação das potencialidades ambientais, turísticas, históricas e paisagísticas desses locais. Ocorre que os municípios bafejados por tamanha sorte desconhecem ou não aproveitam a benesse, abrindo mão de verba estadual, federal e de organismos internacionais (inclusive de ONGS sérias), para aplicação nas nobres finalidades. Daí porque nossa aniversariante, apesar do empenho isolado e da abnegação de alguns seus filhos, está com ruas intransitáveis, em especial nos subúrbios, arborização pífia, serviços públicos deficientes, internet mambembe, sem um único teatro, afora emblemáticos imóveis beirando a ruína, do que é o melhor exemplo o Mercado Municipal concebido pelo famoso arquiteto José Sidrin, sem que nada se faça para reverter essa realidade.
Mercado Municipal de Óbidos, na década de 50.
Mas vamos falar do que temos, que é bem melhor. Sou um otimista por índole e formação e me furto aos extremismos, porquanto os acho vazios e pouco propositivos. Óbidos tem atrações e belezas naturais que merecem ser vistas pelos que a visitam. Anualmente há o famoso e contagiante carnaval do Mascarado Fobó; o mês de Julho, dedicado à sua excelsa Padroeira Sant’Ana é uma unanimidade: na praça da bela catedral acontecem encontros de velhos amigos, afloram clamores e amores que a vida por si inviabilizou; existem, ainda, o Festival do Tucunaré no cinematográfico Lago Curumú, sua formosa cachoeira, a silente contemplação da “Passagem Heróica do Amazonas” (que só nós possuímos), os igarapés deslumbrantes, uma esticada de barco ou de carro ao mágico Lago Mamaurú, o deslumbre da exuberante e florida vegetação da Serra da Escama, a animada Feira do Produtor Rural onde de tudo se vende e mais ainda se compra, o Festival do Jaraqui que não tem hora para acabar e cuja primeira versão se deu em 1987, sobre o qual escreveu o saudoso Hugo Ferrari, profetizando: “Fala-se muito nas coisas do Pará, entretanto não temos uma política totalmente voltada para a exploração turística”. Se não temos, como denunciou Ferrari, podemos criá-la por nossos próprios meios. O que não pode é Óbidos, de denso passado e berço de ilustres, amesquinhar-se perante outras cidades do Baixo Amazonas que prosperam a seu lado, enquanto ela patina na mesmice. Precisamos combater esta bizarra vocação de subserviência que mancha o conceito desse povo valoroso, que não hesita em revelar sua origem, onde quer que seja conveniente fazê-lo.
A ser verdade que “Óbidos protege a garganta do Amazonas”, temos que nos convencer dessa nossa simbólica importância. Mas infelizmente ainda ajudamos com preciosos votos a eleger alienígenas, não raro interesseiros e aproveitadores, verdadeiras nulidades que depois nos ignoram por completo, quando bem poderíamos ter nossos próprios representantes no parlamento estadual, inteiramente compromissados com os lídimos interesses e aspirações da população, como um dia já tivemos. Também não aumentam nosso prestígio as figuras bisonhas de pseudo lideranças políticas que após eleitos, passam a frequentar com preocupante assiduidade as páginas policiais por condutas indignas, despidos por completo do senso mínimo de probidade. Escolher sem medo agentes políticos decentes e honestos revela-se, além de um exercício pleno e subjetivo de cidadania, um direito impostergável e um dever cívico, para não reclamar ou lamentar depois. De lembrar que nem mesmo os inesperados castigos dos céus, como a cheia impiedosa de 1953 ou o verão implacável de 1998 intimidaram esse povo viril.
Forte Pauxis
A antiga Fortaleza dos Pauxis, fundada em 02.10.1697, que já era Vila desde 25.03.1758, foi elevada na monarquia à categoria de cidade no dia 02.10.1854, através da Resolução n.º 252. A Comarca também foi criada no regime imperial em 23.09.1867, por força da Lei n.º 520. E a adesão de Óbidos ao regime republicado se deu na sessão da Câmara Municipal realizada em 26.11.1889. Por conseguinte, a provecta senhora que hoje aniversaria tem berço sólido e uma rica história para contar, sobre como venceu adversidades, como a horda cabana que a invadiu, o interventor autoritário que por mesquinha vindita dividiu seu território, as administrações desastrosas que condicionaram seu retrocesso e seu acachapante isolamento geográfico que bem poderia ser minorado se lá existisse um aeroporto ativo e operante. Com esse misto de exaltação da terra querida, “noves fora” os desabafos aqui feitos nas linhas e entrelinhas, penso que se eu tiver contribuído para fazer reascender no espírito de cada obidense o sentimento de brio, pertencimento e esperança no futuro da nossa cidade, o esforço terá sido fecundo e cada qual de nós que lá nasceu, esteja aonde estiver, recordará sempre esta data com justificado orgulho e superlativa gratidão.
(*) Advogado e escritor. Membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Fundador e ex-presidente da AALO.