DÊ UM “JOINHA” LÁ MINHA PATROA!

DÊ UM “JOINHA” LÁ MINHA PATROA!

O artigo seguinte é de Lúcia Helena Alfaia de Barros publicada na Revista Zcultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que concorreu a edital aberto  pra crônicas, diários, etc durante a pandemia.

DÊ UM “JOINHA” LÁ MINHA PATROA!

Lucia Helena Alfaia de Barros*.

Todas as manhãs eles se encontram. Para chegar, enfrentam até duas horas de percurso em ruas de intenso movimento. Repartem as esperanças e o calor de um dia ensolarado, dividem sonhos e o dinheiro para um lanche “completo”: coxinha de frango com suco de abacaxi. Para alguns, a primeira refeição do dia.

A calçada dos casarões antigos do Largo do Redondo, confluência das ruas Nazaré e Quintino Bocaiúva, em Belém, é o lugar de estabelecer as metas. Nesses casarios, as janelas são adornadas por pequenos vegetais que dividem com os pombos, as eiras e beiras do imóvel e escutam as histórias desses homens, oferecendo singelo abrigo àqueles que acordaram para mais um dia de labor. Quando abertas, arejam os pensamentos daqueles que derramam a força de seu trabalho no suor das pedaladas extensas.

Os bike-entregadores aguardam a abertura de restaurantes e lanchonetes que estendem todos os dias faixas com números de contato para os pedidos. Entregas necessárias para sobreviver ao “pandemônio” com adaptações de vendas através da telefonia móvel, rápidas como um click, para o envio do cardápio e apreciação dos produtos. No novo normal, os entregadores são a fachada luminosa dos empreendedores e seguram seus empregos nas palmas de suas mãos.

A quantidade de contas para pagar reflete a demanda de trabalho que será realizado nos sete dias consecutivos. O objetivo é unânime: sobreviver. De um lado um vírus modificando o cotidiano de pequenos e grandes comerciantes; de outro, entregadores de lanches, almoços e remédios teclando seus aparelhos móveis para saber o menor percurso para maior rapidez. Revisam freios, rodas, marchas, e no guidão um pequeno retrovisor avisa a distância que deve ser mantida entre os carros. Seus celulares são adaptados de forma que a visualização do GPS os leve o mais rápido possível a seus destinos.

Poucos exibem a conquista veloz: a motocicleta. Objeto do desejo para garantir o menor tempo de entrega para o melhor produto. No contexto viral, locadoras de motos consignadas distribuem as parcelas e oportunizam o financiamento do sonho, distribuem panfletos nos pontos dos entregadores indicando que o desejo das cilindradas é possível, basta querer trabalhar e ser um ótimo profissional, vontade que arranca suspiros de cada olhar e atiça a imaginação.

Sonhos à parte, acordam com um aceno, sabem que a hora do almoço é também o momento de maior volume de entregas. Com as marmitas organizadas, bloquinhos de endereços e máquinas de cartão a postos, a segunda maratona do dia é iniciada. Tênis antiaderentes são encaixados nos pedais velozes, a audição é treinada para ouvir além das buzinas dos carros, os assobios dos colegas sinalizando mais entregas, olhos afoitos percorrem o retrovisor, o GPS, e desafiam a velocidade dos pensamentos; marchas são trocadas ao menor sinal de engarrafamento, e as mensagens instantâneas avisam quando os desvios devem ser feitos.

Campainhas e interfones são canais de comunicações com seus destinatários. Ao tocá-los passam pelo crivo das câmeras dos condomínios, são despidos pelo olhar dos porteiros e aguardam pacientemente na calçada para a entrega do pedido. Quando entram, saguões e garagens conectam o virtual ao real e, com isso, os desejos dos clientes são saciados. Aptos para a entrega necessitam cuidar da aparência para que a curtida dos consumidores pelo aplicativo lhes garanta a permanência na função.

O giro pela urbanidade se intensifica e as manobras fogem do forte sol sob a sombra das frondosas mangueiras, ou encaram o calor líquido da temperatura da cidade. E assim trabalham os entregadores de aplicativos, homens em sua maioria, com sonhos e esperanças levadas em caixas coloridas sobre as costas, sinônimo de pedidos feitos e números cadastrados para a execução do serviço. Giram como os algarismos e se deslocam por todos os cantos da cidade, identificados pelas cores e símbolos de suas mochilas. Diminuem a fome e saciam os desejos de outras pessoas com um cardápio expresso variado, e engolem sua vontade de comer multiplicada pelos centímetros dos sanduíches e quilograma das marmitas levadas.

Trabalhadores de longos períodos agrupam-se pelas redes sociais e informam aos interessados a empresa ascendente e suas normas. São vistos cotidianamente em frente a bares, lanchonetes, padarias e, nestes tempos de pandemia, ocupam grades e muros de grandes supermercados. São cifras que reproduzem o mercado de trabalho e a má remuneração. São vidas, são entregadores de bike que dependem do gesto indicativo para continuar suas pedaladas, e quem sabe manter a sua alimentação e de seus familiares.

* Lucia Helena Alfaia de Barros é discente do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural do Museu Paraense Emílio Goeldi e integrante do Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia (MOCOHAM).

 

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