VELHO AMIGO!

VELHO AMIGO!

Jorge Ary Ferreira

Um dos grandes prazeres que a Vida nos dá são as amizades que cultivamos no decorrer da nossa existência, dentre essas amizades, existem aquelas que vêm lá da infância, quando a vida ainda é desprovida de ambições, quando a natureza fala mais alto que os interesses, e, se faz mais presente principalmente quando essa vida é vivida em uma cidade interiorana com as características da nossa querida Óbidos, dessas amizades, a grande maioria permanece presente durante toda a nossa existência, uma vez que achamos por bem permanecer vivendo na terra em que nascemos, assim como muitos desses amigos, e mesmo aqueles que partem em busca de outros horizontes e periodicamente aparecem para visitar seus familiares, ou para rever a terra que embalou suas infâncias, proporcionando a nós momentos de alegria mutua ao revermo-nos, de darmos boas gargalhadas, lembrando-se das peraltices da infância e muitas das vezes brindando a vida.

O certo é que, são muito prazerosos esses momentos de reencontro, dentre esses rol de amigos posso citar Lelé Chaves, Leão do Cícero, Otávio Albuquerque, João Canto, Wilson Bentes, Stones Machado, Paraguai, Zé Fraqueza, Celso Haiglon... quantos e quantos sabemos que fazem parte dessa lista, que está guardada em nossa memória afetiva, muitos partiram antes do combinado já não nos vemos mais fisicamente, porém sempre fazem parte das nossas orações, e sempre são lembrados com bastante carinho nos momentos saudosos, outros sumiram no mundo, perdemos o contato, lá um dia a saudade aperta e recebemos um abraço pelas redes sociais, sempre revelando a vontade de um dia voltarem para reverem a terra natal e encontrar as velhas amizades.

Esta semana que passou eu vivi um desses momentos prazerosos, estava em Santarém com a família, quando recebi o telefonema de um desses amigos que a 51 anos havia partido, e encontrava-se em Óbidos. Havia partido como na maioria dos casos, levado por sua mãe, em busca de dar um futuro melhor a seus filhos, apartando precocemente de suas amizades de infância, tive o prazer de rever meu amigo Jorge Pantoja.

Falar de Jorge Pantoja tenho certeza que dificilmente será lembrado por algum obidense, porém se eu falar no “Piracuí da D. Maria Ferro”, aí eu tenho certeza que muitos lembrarão.

O “Piracuí” foi de longe o “picolezeiro” mais famoso que Óbidos teve no final dos anos 60 início dos anos 70, conhecido de longe pelo seu grito estridente:

- “OLHA O PICOLÉ, QUADRADO PRO HOMEN E ROLIÇO PRA MULHER”!

E para negociar o seu produto, escalava qualquer navio que aportasse em Óbidos, oferecendo seus picolés de rede em rede, e se colocando sempre a disposição dos viajantes para qualquer tipo de mandado do tipo comprar cigarros no comercio do Madeireiro. Conferia seus picolés com o interessado que ficava responsável por sua cuba, e saía em disparada para retornar antes que a embarcação partisse, garantindo com isso generosas gorjetas, que eram ocultadas para custearem a compra de novas petecas, de um papagaio novo da fábrica do Bibi do Xavier Araújo, famosos por serem sempre bem feitos, não apresentavam “pensura”, eram “pancosos” quando empinados no “treme”, sempre deixando um pouco de recurso para um tubo de linha 30, 100 gramas de cola de barra no Armazém Campeão, faltando apenas encontrar o famoso vidro azul de magnésia para a fabricação de um ótimo cerol.

Um amigo que onde quer que nos encontrássemos, arriava a sua cuba de picolé, tirávamos as peteca devidamente armazenadas o elástico do calção, corríamos dois riscos do chão e começava o nosso “turiti”, que só parava quando um “abofitava” o outro, a não ser que aparecessem outro moleques, ai mudávamos para o “fala pifônio”, que era uma modalidade de disputa, onde podiam jogar vários participantes, tirava-se o ponto, quem ficasse mais perto da linha seria o primeiro a jogar, casávamos as petecas em um círculo com uma cruz no meio, onde cada espaço criado pela cruz era escrito as letras: T, B, D e R, que significava tira, bota, deixa e raspa, sendo que nessa modalidade, nós já jogávamos do "contrato", ganhando o máximo que pudéssemos dos outros moleques, depois repartíamos o produto da jornada, guardando sempre o lucro, devidamente enterradas em latas no fundo dos nossos quintais, isso quando os “abofitados” não éramos nós, nesse jogo, antes de atacar a peteca do adversário era obrigado pronunciar: fala fulano, o nome do dono da palheta que seria atacada, caso esquecesse de falar, se acertasse anularia o ataque e você não ganhava nada, gerando com isso encrencas que certas vezes eram resolvidas no dedo, abria a roda e a porrada comia, sendo meu amigo famoso na “piolheira”, que logo era apartada por algum adulto que passasse naquele momento, e isso ia quase sempre ate quando ou seus picolés estavam para derreter todos, atingindo um estado que o Jacinto Torres não os recebesse de volta, causando-lhe um prejuízo maior, pois teria que paga-los ao dono da fábrica da deliciosa iguaria, além de uma pisa da Dona Maria Ferro, que contava com aquela pequena renda e era muito bem vinda para complementava as necessidades domesticas, e, era sempre muito ríspida com ele, convenhamos, ele fazia por merecer, o que menos importava para o meu parceiro era a sua venda de picolé, onde tivesse alguém empinando um papagaio, rodando um pião, ou uma bola em qualquer dos campinhos da cidade, era motivo para deixar sua cuba de lado, geralmente pendurada em algum galho de uma arvore nas imediações, longe do alcance dos outros moleques que em qualquer descuido seu, afanavam um picolé que muitas das vezes só era notado na hora da conferência de prestação de contas com o saudoso Jacinto Torres, que abatia o valor de custo do picolé roubado de sua comissão, causando um aborrecimento a D Maria Ferro, que era quem justava as contas com o fabricante, motivando sempre umas lambadas de galho de cuieira para ter mais responsabilidade. Porem, quando meu parceiro flagrava o meliante, podia correr que ele pegava na carreira e cobrava o picolé na porrada, formando nova roda de briga, quem olhava de longe já dizia: é bem o Piracuí que já está com um na "gravata"!

Hoje me aparece o velho amigo, assim como eu já grisalho, acompanhado de dois filhos adultos, bem formados, pessoas agradáveis, um Professor e o outro Policial, ávidos em conhecer a história da infância de seu pai, o papo não poderia ter sido em um local melhor, uma cabana do aprazível Curuçambá, com uma cervejinha bem gelada e um delicioso pirarucu desfiado, servido pelo amigo Junior, um “mondonguense” da melhor qualidade e dono de um tempero delicioso. Infelizmente, só tivemos aquele almoço para botar em dias um papo que merecia pelo menos uma semana, seus filhos não conseguiam entender os hobbies do pai: trepar na tolda do Radiante (motor do Sr. Brito Souza) sem o Zunga ver, para pegar as ondas dos navios Princesa Izabel que passava em alta velocidade, causando grandes marolas batendo as embarcações que permanecessem no porto, sendo sua outra paixão, ajudar o Eloy Mamede e Mário Nunes a chegarem com as reses para abate no antigo Curro, sempre munido de uma vara, cutucava no "vazio" do animal, e muitas das vezes escapava de ser atingido por um coice, ajuda essa, que lhe proporcionava a preferência na compra da cabeça.

Nessas ocasiões, o tempo passa muito rápido, e apesar do pouco tempo, foi enorme o prazer de encontra-lo, de brindar uma amizade pura, e saber que se tornou uma pessoa bem-sucedida e feliz. Nosso encontro terminou com lágrimas nos olhos, com ele olhando para seus filhos e confessando:

- Meus filhos, nos éramos um produto bruto, eu não fui daqui, me arrancaram, é difícil para vocês compreenderem, eu provavelmente quando morrer, meu corpo será enterrado onde vivemos, em Descalvado SP, mas minha alma deve fazer visagem aqui na “Bacuri” onde me criei. Saibam que quando vocês me olharem nos dias 02/11 de todos os anos as sete horas da manhã eu estarei pensando;

- A essa hora eu já estava escolhendo a melhor areia na cabeça do padre para vender na porta do cemitério;

- Nos carnavais eu me vejo de dominó e capacete;

- Vocês não imaginam quantas noites eu sonhei vestido com o uniforme do Mariano e com o grande jogador que eu teria sido, pois eu chegava naquela sede e sonhava com minha foto naquela parede...!

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