TERÇA DA CULTURA POPULAR: “Voto de Minerva”

TERÇA DA CULTURA POPULAR: “Voto de Minerva”

Célio Simões (*). 

Há situações que ocorrem nas reuniões de associações civis regidas por estatutos e regimentos, em que o presidente tem que exercer o seu direito ao “VOTO DE MINERVA”.

A expressão tem sua origem em uma história da mitologia grega. Agamenon, o comandante da Guerra de Troia, ofereceu a vida de uma filha em sacrifício aos deuses para conseguir a vitória do exército grego contra os troianos. Sua mulher, Clitemnestra, cega de ódio por esse ato irracional, o assassinou. Com esses dois crimes impunes, o deus Apolo ordenou que o outro filho de Agamenon, Orestes, matasse a própria mãe para vingar o pai.

Orestes obedeceu, mas seu crime também teria que ser vingado. Nada obstante, em vez de aplicar a pena, Apolo deu a Orestes o direito a um julgamento, que seria o primeiro do mundo. A decisão, tomada por 12 cidadãos que fizeram as vezes de jurados, terminou empatada.

Chamada pelos gregos de Atenas (Palas Atená), a deusa da sabedoria proferiu seu voto, ante a indefinição do empate. O nome Minerva, segundo explicação de um conto da mitologia grega, vem do latim mens, que significa mente ou pensamento. A deusa grega Palas Atená corresponde à deusa romana Minerva, da sabedoria, das artes e da guerra, que protegeu os gregos na Guerra de Troia. Como deusa da paz e da razão, ela presidia as artes, a literatura, a filosofia, a música e toda a atividade inteligente.

Minerva é representada com um capacete na cabeça, a égide no braço e uma lança na mão, símbolos de guerra tendo ainda, junto a si, um mocho e diversos instrumentos de matemática, símbolos das ciências e das artes. E o voto da deusa da sabedoria, no julgamento de Orestes, foi no sentido de desempatar o feito poupando a vida de Orestes, fiel ao seu espírito lúcido e construtivo. Eis a razão da expressão VOTO DE MINERVA (também conhecido como “voto de desempate” ou “voto de qualidade”). Hoje essa prática também é adotada nos tribunais, conselhos e demais colegiados onde ocorram julgamentos, no sentido de se decidir, havendo dúvida, sempre em favor do réu acusado.

Como em Pindorama as coisas são intencionalmente adulteradas, subvertidas ou deturpadas para satisfazer conveniências pessoais ou de grupos, o instituto do VOTO DE MINERVA transmuda-se às vezes em “VOTO QUE ME ENERVA”. Originalmente invocado para solucionar pendências, dilemas e impasses de forma sábia e honesta, tendo como parâmetro a ética e a decência, esse ideal de justiça desaparece quando surge o famigerado “jeitinho brasileiro” forma esperta de assegurar interesses escusos, de blindar apaniguados de quaisquer reprimendas. Em tais casos, são exercitadas burlas capazes de salvar as aparências, fazendo vicejar na alma do povo, a sensação de que o crime compensa, que os fins justificam os meios, que a lei que interessa é a que vale para os amigos, pois para os inimigos sobram dela apenas os rigores, nem a esperada benesse do voto de Minerva.

Até no folclore de antanho essa expressão se faz presente, como na “Dança da Desfeiteira”, costume de antigas origens, a caminho da extinção, muito praticada nas festas da quadra junina. Funcionava assim: antes avisada, a orquestra executava um ritmo forte, ao som do qual os pares evoluíam no salão ou na ramada (quintais ornamentados com ramas onde eram realizadas as festas), num ritmo que lembra uma marcha valsada, pelo constante movimento dos braços (bem esticados) e do corpo dos brincantes mirificados pela dança.

Tais espaços ficavam apinhados de dançarinos e aqueles casais que “por coincidência” estivessem bem em frente à orquestra (pau e corda de antes, banda nos dias de hoje) quando esta cessava abruptamente de tocar, o cavalheiro era obrigado a recitar uma estrofe irreverente de 04 versos com apenas duas rimas, que era respondido de pronto pela dama numa única frase, traduzindo repulsa, simulando despeito ou aprovando o que acabara de ouvir.

Após a declamação, a orquestra prosseguia no ritmo da Desfeiteira até o próximo casal e assim sucessivamente, para o deleite, o aplauso ou as estrondosas vaias dos demais, dependendo da capacidade de improvisação do cavalheiro, suas falas de criticas ou de puro endeusamento à sua dama.

A Desfeiteira (que deriva de “desfeita”: ato ou dizer desairoso, que fere alguém em sua dignidade, desconsideração, afronta, insulto) visava primordialmente evitar a monotonia nas festas juninas, que eram bem diferentes das de hoje, o que era plenamente conseguido, mercê das gargalhadas que causavam, pela inteligência ou acrimônia dos versos, a falta de rima, a inibição ou a gaiatice do declamador. O folclorista paraense Francisco Manoel Brandão no livro “Terra Pauxi” nos mostra como eram tais improvisos, na linguagem típica do interior:

O cavalheiro:

Garça murena-parda

Pescuçu de vai-e-vem

Estu dançando a desfeiteira

Nus braçus do meu bem!…

A dama: 

Inxirido!

Em outros autores, surge o aproveitamento da expressão popular abordada neste texto, mostrando que ela não é privativa dos ambientes eruditos:

O cavalheiro: 

O surriso de alegria

Que a tua cara conserva

Te livra de tuda culpa

Com meu voto de Minerva!…

A dama: 

Te esconjuro disgramado!

Convém lembrar que no Brasil, por atávica formação do povo brasileiro, até os assuntos de maior seriedade acabam em samba, quando não, ironizados nas músicas do carnaval e até nos versos da desfeiteira…

(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Adicionar comentário


Código de segurança
Atualizar