Haroldo Figueira
Quando eu era criança, um dos meus passatempos favoritos consistia em vagabundear com os meus amigos pela orla que vai do Porto de Cima ao Geretepaua. Isso em época de vazante do Rio Amazonas, já que, em período de cheia, a caminhada se tornava impraticável. Insistir em fazer o percurso implicava passar por trechos alagados, arriscando-se a levar ferroadas de arraia, descargas elétricas de poraquês ou cair em peraus traiçoeiros.
A meio caminho do trajeto fica o Pingo D’Água, um dos locais obidenses cuja imagem guardo carinhosamente. Para quem não é nativo ou ainda não visitou a cidade, refiro-me a uma escarpa íngreme, de tabatinga, que mede mais ou menos 20 metros e se ergue até as imediações do planalto onde se assenta o velho cemitério São João Batista. Faz parte das chamadas terras firmes, como é conhecida a faixa de território amazônico, não sujeita a inundações, que margeia pelo lado esquerdo o maior curso fluvial do mundo.
O nome, singular à primeira vista, deriva de uma fonte existente na parte intermediária da elevação, de onde escorre, de modo gotejante, um líquido cristalino e frio que deixa permanentemente molhada não só a vertente inferior do barranco, mas o chão argiloso à beira-rio. Por conta disso e por fazer frente para o poente, o lugar torna-se fresco e sombrio pela manhã.
A molecada gostava de brincar ali, entretendo-se, principalmente, com atividades como escalada e pescaria. A primeira afigurava-se tão desafiadora quanto temerária. Havia sempre o perigo de alguém cair e machucar-se seriamente ao tentar galgar, com as mãos nuas e os pés descalços, aquela falésia retilínea e escorregadia. Já a última mostrava-se mais tranquila. Exigia só paciência para aguardar que piramutabas e piracatingas abocanhassem os ganchos metálicos revestidos com minhocas ou pedaços de pescado.
Nem por isso, no entanto, o ato de pescar estava imune a contratempos. O pescador devia preparar-se para, de vez em quando, por conta própria ou com o auxílio de algum canoeiro solícito, encarar a complicada e às vezes infrutífera tarefa de desenganchar suas linhas dos troncos e galhos submersos. Para não ver o divertimento interrompido antes da hora, recomendava a prudência que trouxesse de casa anzóis sobressalentes.
Era na superfície desse paredão avermelhado que as arirambas faziam seus ninhos escavando-os em uma área mais ou menos equidistante entre a base e o topo. A escolha, ditada pelo instinto de sobrevivência, revelava-se duplamente estratégica, a saber: a) por se tratar de animais piscívoros, a proximidade do rio facilitava-lhes o suprimento alimentar; b) o acesso difícil aos ninhais visava resguardar os filhotes da ação de predadores.
Sentado na areia da praia, na espera paciente de que o peixe mordesse a isca, distraí-me observando a rotina desses pássaros. Postavam-se aos pares no alto de galhos próximos aos ninhos, como se apenas descansassem. Na realidade, varriam com o olhar a corrente fluvial à sua frente perscrutando a passagem dos cardumes. De repente, em voo rasante, veloz e direcionado, passando a poucos metros acima da minha cabeça, mergulhavam nas águas do rio, emergindo de lá com as refeições do dia atravessadas nos bicos longos e pontiagudos. Repetiam a operação até que as necessidades de sustento da família resultassem atendidas.
Não era só no Pingo D’Água que essas aves ribeirinhas costumavam habitar. Faziam-no também, no lugar denominado Pedra Grande, distante cerca de um quilômetro, só que em sentido contrário, isto é, no caminho pela praia que leva ao centro comercial. A estrutura física e as condições de piscosidade dos dois ambientes são semelhantes, a diferença fica por conta da ausência, neste último, do filete de água a fluir mansamente pela ribanceira.
A rigor, as arirambas não pertencem às variedades ornitológicas que se destacam pela beleza melódica do canto como é o caso dos sabiás, curiós, canários, graúnas, corrupiões, rouxinóis e outros mais. Também a plumagem verde-escuro que exibem pouco ajuda na competição estética com a cobertura multicolorida que reveste os corpos de outros representantes de nossa fauna alada como araras, jandaias, periquitos, tucanos, surucuás, etc. Aparentemente, de admirável nelas só a habilidade e a eficiência na arte de capturar alimentos.
Ante o exposto, algum leitor mais curioso poderia eventualmente me questionar: ora, se dos espécimes sob enfoque quase não se ouve falar, se não possuem o porte vistoso nem os dotes canoros que, de uma maneira preponderante, conferem charme e encanto ao passaredo, por que então ocupar-se em escrever sobre eles? Respondo. Embora pouco interessantes como o são rolinhas, bem-te-vis e pipiras, tais como estas, as arirambas em algumas ocasiões povoaram o cenário da minha infância. Têm, portanto, espaço cativo em minha memória afetiva.
Natal, 16 de dezembro de 2017.