Da copa das árvores, a Bióloga Deliane Penha colheu dados que mostram como a floresta se defende das agressões do desmatamento e da seca.
Por: Ana Lucia Azevedo
Ao se aventurar no alto de árvores do tamanho de edifícios de dez andares, uma cientista decifrou o enigma do poder verde da Amazônia. Dependurada em precipícios vegetais, ela desvendou o mistério de por que mesmo sob a inclemência do sol nos trópicos, fustigada por seca intensa, a Amazônia mantém o viço que a faz parecer um oceano verde.
A bióloga Deliane Penha descobriu ainda o que é preciso para que a força da floresta amazônica não desapareça. No ano da COP30 na Amazônia, a empreitada científica de uma filha da floresta desvendou um segredo que não está à mostra e escapa do escrutínio de satélites.
Dependurando-se na copa das árvores mais altas, que balançam ao sabor do vento como ondas gigantes, Deliane colheu dados que mostram que a floresta, se deixada em pé, resiste a extremos climáticos melhor do que se imagina, graças a sua proverbial biodiversidade.
O viço da mata é fruto de uma rede complexa de trocas entre o ar, a mata e o solo.
A paraense Deliane, pesquisadora da Universidade Federal do Oeste do Pará, investiga como a floresta sofre e se defende das agressões do desmatamento e dos extremos do clima, como a seca de 2023/24.

Aos olhos de satélites, a mata parece uma coisa só. E modelos matemáticos se baseiam no pressuposto de que, na seca, as árvores limitam a perda de água pelas folhas à medida que otimizam a captação de carbono. Dessa forma, se mantém hidratadas.
A realidade, porém, é bem mais complexa, mostrou o estudo de Deliane e seus colegas. A floresta, como um oceano, se transforma à medida que se aprofunda até o chão. Árvores de diferentes alturas sofrem e respondem de forma distinta à escassez de água. Quem vê a copa, não vê o coração e menos ainda os pés da Amazônia.
Mas, para descobrir o impacto da seca, Deliane precisou ir do chão à “superfície” do oceano de árvores, o alto da copa ou dossel, onde a Floresta Amazônica parece se emendar com o céu.
Para isso, teve que superar o medo de altura, aprender a escalar árvores arranha-céus e a andar sobre elas com desenvoltura, como se fossem o chão da floresta.
— Sempre tive muito medo de altura. E no alto das árvores venta muito, os galhos balançam, se dobram. Tudo é instável. No início, ficava apavorada de ficar pendurada. Não conseguia olhar em volta. Só olhava para as folhas que precisava estudar. Pensava, meu Deus, vou morrer. Quem vai cuidar dos meus filhos? — afirma Deliane, de 39 anos, mãe de três filhos.
Ela conta que, quando estava aprendendo a escalar, um dia ficou tão apavorada que disse ao marido que não continuaria porque morreria e seus filhos ficariam sem quem cuidasse deles.
— E ele brincou e falou que não tinha problema, que continuaria a cuidar deles. Só por isso falei vou continuar e não vou morrer. Ninguém vai criar os meus filhos por mim. Esse desafio dele me encorajou — diz a pesquisadora.
Deliane, cujo projeto é apoiado pelo Instituto Serrapilheira, sempre se considerou movida pela paixão à ciência. Mas precisou de mais do que isso para fazer medições e coletar as preciosas folhas com as quais poderia avaliar os diferentes níveis de hidratação das árvores.
A Amazônia é extremamente quente e úmida, escalar uma árvore de 30 metros exige enorme esforço. Para fazer o estudo, era necessário sair do acampamento às 3h da madrugada; calibrar e preparar os equipamentos. E começar a escalar para conseguir pegar a primeira folha no máximo às 6h da manhã.
— Quando você sobe, só desce quando termina o trabalho. É preciso fazer tudo lá em cima, pendurada, e isso inclui comer e até fazer xixi. Tem muito mosquito atormentando, uma umidade extrema, que aumenta a sensação de calor. O bom é que deu tudo certo — relata.

Foi ao se aventurar nesse mundo em que altura é destino que Deliane descobriu as diferentes histórias de resistência e de vulnerabilidade ao clima.
— Quando perdi o medo, comecei a finalmente a ver a toda a grandeza da floresta. A observar vários tipos de pássaros, a apreciar o balanço das árvores. Percebi que balançam justamente para não quebrar — diz a pesquisadora.
Ela conheceu histórias como a do cambará, do breu e da canela-de-jacamim, vizinhos num mesmo quinhão da Amazônia, na Floresta Nacional do Tapajós, no Pará, onde foi realizado o estudo.
Quando veio a seca, o cambará, um gigante de 30 metros, sofreu, mas não esmoreceu. O breu, mediano, nem tanto ao céu nem tanto à terra, passou sem maiores danos. Mas a fúria da estiagem não teve piedade da canela, baixinha e de caule magricela.
A história do cambará e seus vizinhos se multiplica por milhares de espécies em meio à vastidão da biodiversidade amazônica, a estimativa é que haja não menos que 16 mil espécies de árvores. Uma diversidade que escapa aos olhos dos satélites e é invisível aos modelos matemáticos que simulam como a Amazônia responde à seca, diz Deliane.
No estudo publicado numa das revistas mais importantes da botânica, a Tree Physiology, Deliane e colegas descrevem suas descobertas. Mostram que o tamanho das árvores é determinante no impacto da seca e oferecem informações importantes para desenvolver modelos mais próximos da realidade para projetar o impacto de secas na Amazônia.
O cambará ou quarubarana (Erisma uncinatum) e as outras árvores altas que formam o dossel, todas na faixa dos 30 metros, conseguem se manter verdes e hidratadas porque têm raízes profundas, que chegam a cerca de sete metros de profundidade. Com isso, alcançam reservatórios de água, quando está já desapareceu da superfície. Não à toa, em plena seca, o cambará se dá ao luxo de florescer e enfeitar a floresta com uma explosão de minúsculas flores amarelas ou brancas.

Quando o calor se torna extremo, as grandonas dispõem ainda de outro mecanismo para regular a saída de água.
— As árvores percebem o calor e se regulam. É como se pensassem ‘nossa está muito quente aqui em cima, não podemos perder água’. Elas então fecham seus poros, os estômatos, que ficam na folha e são a principal via de trocas gasosas entre a planta e o ambiente, como a de CO2 e a saída de água — explica Deliane.
Já as árvores de altura intermediária, que a ciência chama de dossel intermediário, não possuem raízes tão profundas quanto as gigantes. Por outro lado, também não são tão expostas à inclemência do sol e do vento quanto estas.
Com cerca de 20 metros de altura, se destacariam no restante do país, mas na Amazônia são medianas. Ainda assim, fascinam. O breu (Protium apiculatum) perfuma a Amazônia. Sua essência está em marcas comerciais Brasil afora e, sua resina tem usos medicinais e religiosos.
Um vizinho dele no Tapajós, o taichi (Tachigali chrysophylla) floresce e frutifica apenas uma vez na vida e, logo depois, morre. Ele chama atenção pelos grandes cachos ornamentais de flores de uma amarelo intenso, com os quais parece se despedir da vida.
— As árvores dessa faixa da floresta, o dossel intermediário, também sofrem com a seca, mas de forma geral, se viram bem porque, embora não captem tanta água do subsolo, tampouco apanham tanto do sol e do vento quanto as mais altas, que servem de proteção para elas — explica Deliane.
A conta da seca é paga justamente pelas espécies menores, do andar de baixo, o chamado sub-bosque. São árvores de até três metros de altura. Elas são poupadas da fúria do sol e do vento. Mas dependem da água superficial, vinda da chuva, quando esta escasseia, essas espécies minguam e sofrem, pois têm raízes rasas.
É o caso da canela-de-jacamim (Rinorea pubiflora), cujo nome alude à ave de perninhas finas, comum nas matas amazônicas. Uma arvoreta modesta, que não passa da altura do telhado de uma casa.
O amor pelas árvores, grandes e pequenas, custou à Deliane a vaidade e alguns problemas de saúde. O protetor solar não foi suficiente para evitar os danos do sol na Amazônia e ela ficou com o rosto manchado. Horas seguidas de trabalho presa a uma cadeira de escalada provocaram o surgimento de varizes. Mas o que mais a incomoda é a pouca valorização da ciência, principalmente a feita em campo.
— Não dá dinheiro, não se é valorizado e ainda há quem faça fake news — lamenta.
Porém, não lhe passa pela cabeça a ideia de desistir:
— É preciso entender como a floresta funciona e o papel dela da manutenção do clima. O que está destrói a floresta é o desmatamento, as queimadas. Contra isso a floresta não tem proteção.
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FONTE: O Globo