Haroldo Figueira
A natureza é um celeiro de maravilhas. Sobre isso acredito não haver dúvidas. Embora às vezes se revele assustadora, no geral é capaz de produzir coisas belas, agradáveis aos sentidos e estimulantes para as emoções. Quem nunca se sensibilizou com o espetáculo do arco-íris sob o azul do firmamento? Com a luminosidade do amanhecer ou com a suavidade colorida do ocaso? Quem não se deixou embalar pelo canto afinado dos pássaros, pelo vaivém das ondas do mar, pelo barulho relaxante do vento batendo na folhagem das árvores? Quem não se embeveceu com o verde das matas e das plantações, com uma noite de luar ou de céu coalhado de estrelas? Não é à toa que ela se constitui na principal fonte inspiradora para poetas, pintores e outras pessoas envolvidas com a arte.
De fato, nela há formas, cores, movimentos, luzes, sons, harmonia, equilíbrio e outros elementos de que os artistas necessitam para, a partir deles, dar materialidade às obras nascidas de seus engenhos criativos. Difícil não perceber em uma poesia, em uma escultura, em uma pintura, em uma dança, em uma jóia, em um projeto urbanístico ou arquitetônico, algum pormenor que, direta ou indiretamente, não se relacione com aquilo que de deslumbrante existe nos reinos animal, vegetal ou mineral. O próprio artífice é, ele mesmo, produto da natureza.
Não é, porém, sobre a diversidade que existe no mundo natural que desejo discorrer. Meu intento é falar de flores, esse objeto tão belo e delicado na configuração física e, ao mesmo tempo, tão forte no simbolismo. Elas se prestam para múltiplas finalidades. Desde ornar e embelezar ambientes, como para expressar um gesto de amor, de consideração, de alegria e até de saudade.
Rosas, dálias, crisântemos, violetas, margaridas, lírios, tulipas, orquídeas, girassóis, etc. são espécimes familiares ao nosso cotidiano. Rodeiam-nos tanto na privacidade dos nossos lares, quanto nos lugares públicos muito frequentados, como avenidas, praças e parques. Ornamentam celebrações religiosas, solenidades cívicas, casamentos, aniversários, encontros congraçadores e tantos outros eventos festivos mais. Muitas não nos abandonam nem mesmo quando nos despedimos da vida.
As espécies que aleatoriamente mencionei estão entre as mais apreciadas, admiradas ou utilizadas. Há, no entanto, miríades de outras menos notórias espalhadas por aí. Estão nos campos, nas plantações, nos lugares ermos e áridos e até na superfície das águas. Algumas (que o poeta chamou de baldias) passam despercebidas diante de olhares menos atentos, mas nem por isso deixam de possuir formosura e delicadeza. Suponho que no Sermão da Montanha Jesus tenha se referido a este tipo particular de flores quando alertou: “olhai os lírios dos campos, que não semeiam nem ceifam, no entanto nem Salomão, em toda a sua glória se vestiu como um deles”.
Poderia citar dezenas de flores pouco conhecidas que, esteticamente, nada ficam a dever às suas coirmãs consideradas mais nobres. Limito-me a apontar três exemplos apenas, todos de beleza inquestionável: a flor da vitória régia, a flor do mandacaru e a flor do maracujá. A primeira nasce no ambiente aquático e desabrocha ao anoitecer. A segunda viceja em um cacto, arbusto sem cultivo, natural de lugares quase desérticos. E a terceira, embora derivada de uma trepadeira cultivada, pelo menos popularmente é bem menos apreciada e valorizada que o fruto que dela brota.
Nada entendo de botânica e muito pouco de estética, mas, na minha visão de leigo, não vejo coisa mais perfeita e harmônica, assim considerada na reunião de suas partes constitutivas, do que a flor do maracujá. Cálice, corola, estames e pistilos, dispostos de forma surpreendentemente arrumada, imprimem encantamento e completude ao conjunto, em que não falta sequer o doce perfume. Aliás, não sou o único que a vê como uma flor diferenciada. Já houve quem a percebesse como algo místico, a ponto de associá-la com a Paixão de Cristo.
Reza a lenda popular que a flor foi criada por Deus para lembrar o martírio de seu Filho. Daí ter se tornado mundialmente conhecida como flor-da-paixão (passion flower, para os povos de língua inglesa) por trazer em seus componentes detalhes que, para os olhares mais acurados, lembrariam o sofrimento de Jesus: coroa de espinhos, cravos, açoites, chagas e até o sangue do Crucificado estaria simbolizado no tom de roxo que a colore.
Poetas ilustres como Fagundes Varela, Santa Rita Durão e Catulo da Paixão Cearense (que, apesar do nome, nasceu no Maranhão) a decantaram em seus versos. Por usar a linguagem dos sertões, onde, possivelmente teria se originado a história que a associa com o padecimento do Salvador, escolhi para reproduzir, aqui, o poema de Catulo intitulado A Flor do Maracujá. Ei-lo na íntegra:
“Encontrando-me com um sertanejo,/Perto de um pé de maracujá,/Eu lhe perguntei:/Diga-me caro sertanejo,/Por que razão nasce branca e roxa,/ A flor do maracujá?/Ah, pois eu lhi conto,/A história que ouvi contá,/ A razão pro que nasci branca i roxa,/ A frô do maracujá./Maracujá já foi branca,/Eu posso inté lhe jurá,/Mais branco que a caridadi,/Mais branco que o luá./Quando a frô brotava nele,/Lá pros cunfim do sertão,/Maracujá parecia,/Um ninho de argodão,/Mais um dia, há muito tempo,/Num meis que inté num me alembro,/Si foi maio, se foi junho,/Si foi janeiro ou dezembro./Nosso Sinhô Jesus Cristo,/Foi condenado a morrê,/Numa cruis, crucificado,/Longe daqui como o quê,/Pregaro o Cristo a martelo,/E ao vê tamanha crueza,/A natureza inteirinha,/Pois-se a chorá di tristeza./Chorava os campo,/As foia, as ribeira,/Sabiá também chorava,/Nos gaio da laranjera,/E havia junto da cruis,/Um pé de maracujá,/Carregadinho de frô/Aos pés de nosso Sinhô./I o sangue de Jesus Cristo,/Sangue pisado de dô,/Nus pés du maracujá./Tingia todas as frô,/Eis aqui seu moço,/A estória que eu vi contá,/A razão por qui nasce branca i roxa,/A frô do maracujá.”