Célio Simões
Vendo a cidade do alto ou mesmo percorrendo os seus aclives com ares de descoberta, não é difícil até mesmo ao mais distraído dos mortais constatar que Óbidos se eleva do porto até a Praça Frei Rogério (Praça do Ó) uns bons quarenta metros. É daquele lugar que se tem um panorama quase completo do casario que se derrama rumo ao Lago Pauxis, à Serra da Escama que topograficamente a confronta e ao próprio Rio Amazonas que desliza com placidez no rumo da Ilha Grande.
O “quase” fica por conta de um local ainda mais acima da praça, que não é necessariamente a Capela do Bom Jesus ou a residência do Bispo e sim, aquilo que na minha infância eu ouvia chamarem de “Ladeira do Céu”.
À época das atividades do 4.º Grupo de Artilharia, lá estavam localizadas as confortáveis casas dos oficiais, de vez que do lado oposto da praça (parte de baixo), residiam apenas os sargentos da corporação. Pelo privilegiado endereço, oficiais e graduados eram vizinhos do estabelecimento militar onde serviam.
O imóvel de maior destaque era ocupado pelo comandante, doado anos depois pela União à Justiça do Trabalho, assim como a residência do juiz, bem ao lado. A Ladeira do Céu era uma espécie de observatório natural da cidade, superada atualmente pela enorme torre metálica, cujo tamanho permite ao viajante divisá-la a grande distância, quando vem de Santarém.
Se a memória não me trai, havia lá no alto um reservatório, abastecido por bombeamento feito a partir do que é hoje a ruína da Cabeça do Padre. Dizem os mais antigos que durante as escavações feitas para remover a tubulação, cujo uso ficou obsoleto após a inauguração dos poços artesianos próximos ao Engenho, foram encontradas em locais diferentes valiosas moedas de ouro do tempo do império, escondidas pelos seus proprietários para não serem confiscadas pelos cabanos.
Aquele espaço, chamado pelos moradores de “Ladeira do Céu”, corresponde hoje ao prolongamento da Rua Ildefonso Guimarães, que passa em frente ao Quartel onde serviu o ilustre escritor e tenho certeza que assim foi feito para merecidamente homenagea-lo, ele que foi um dos maiores ficcionistas brasileiros, por muito tempo membro da Academia Paraense de Letras.
Antes da abertura dessa rua, vicejavam ali frondosos benjaminzeiros, de lá removidos a quando da restauração do prédio no governo Almir Gabriel. Outra figura ilustre que empresta o nome a uma rua nos arredores é Cezarina Aquino, educadora por vocação, amiga dileta com quem estudei na escola da mestra Glória Corrêa Pinto, formando um time afiado na tabuada, do qual também participavam Ricardo Auzier e Maria Chaves de Souza, todos de saudosa memória.
Ainda garoto, com o descompromisso de quem tem tempo a perder, eu vivia esquadrinhando a cidade, fazendo como meu território predileto a ponte de madeira do Laguinho e os demais lugares onde fosse possível um banho em regra para aplacar o calor; confesso agora que nunca prestei atenção nas particularidades da Colina do Céu, talvez por ser longe de casa. Acredito que foi a partir desse ponto mais alto – uma espécie de colina sobre a colina – que a cidade se expandiu no rumo noroeste, ganhando outros bairros como Santa Terezinha, São Francisco e Cidade Nova, tornando habitável o que era mato e rarefeitas casas de palha.
Lembro que ainda menino fui lá uma vez, cumprindo determinação paterna, com a missão de receber na casa do Cabo José, um relógio de mesa que ele ficara de recuperar. Cumprida a tarefa, lá nunca mais retornei, pois havia uma diversão melhor mais abaixo, que era pescar “Peixe Boi”, abundantes nos barrancos da Capela do Bom Jesus. Brincadeira pra lá de esquisita. Um fino talo de capim era introduzido nos orifícios de terra batida, no interior dos quais havia um tapuru, espécie de larva esbranquiçada que a molecada se deleitava em “pescar”, restando vitorioso quem demonstrasse habilidade para recolher o maior número deles, após horas nessa estranha atividade. Fica a ideia para os apreciadores do repulsivo turú...
Hoje o bom é caminhar na espaçosa Praça Centenário (antigo Estádio General Rego Barros) ou dar uma esticada nos fins de tarde até a Praça do Ó, onde se pode encontrar companhia para um papo agradável, curtir a ventilação suave que sopra da Serra ou simplesmente contemplar os telhados do casario que convergem para além da antiga Rua da Prainha.
Para os filhos da terra há sempre alguma coisa para recordar e isto é compreensível, pois à medida que o tempo passa a paisagem se modifica, muitos recantos são eliminados para dar lugar a outros, embora entenda eu que a municipalidade bem poderia conciliar a expansão urbana com a preservação dos pontos de referência que fazem parte da nossa identidade cultural, evitando destruir o que a natureza gratuitamente nos legou.
A Ladeira do Céu há muito anda meio esquecida. Tenho curiosidade de saber como se encontra aquela que reputo a parte mais elevada da cidade e se de lá já se pode vislumbrar alguma coisa diferente do que antes existia: caminhos tortuosos, poucas casas, vastos quintais com frondosas árvores, como que oferecendo seus frutos em generosa oferenda a quem passava.
A verdade é que nas fotos aéreas a Ladeira do Céu se apequena, o que pode ser explicado pela presença ali bem perto da imponente e dominadora torre metálica de comunicações, deixando em quem a contempla, de perto ou de longe, a nítida impressão de que ela atrai para si todas as demais ladeiras da cidade.