Rômulo Viana.
Há dias que a moça dava sinais de estranheza: pouca conversa, olhar semimorto, rosto pálido e corpo cada vez mais esquio. Nem de longe parecia àquela linda tapuia por quem os corações dos jovens caboclos ardiam em brasa e as paixões eram inevitáveis. Os cochichos na vila davam conta de que ela não era mais moça e, por isso, sofria as consequências. Outros se arriscavam em dizer que aquilo era obra de feitiço. Mas o certo mesmo é que ela não confessava nem sob pena de morte os motivos do comportamento estranho. Mesmo assim, talvez a primeira opção fosse a mais aceitável, já que a moça mantinha um namoro com um belo mancebo da outra margem do Amazonas. Um jovem de beleza rara e vida misteriosa. Ninguém jamais proseara com ele nas festas no barracão. A não ser a jovem tapuia, que com certeza sedia-lhe os ouvidos para declarações românticas como sempre acontece com os jovens enamorados no inicio da paixão. E outro mistério: o jovem garboso só aparecia nas noites em que a lua se escondia.
Naquele final de tarde, quando a boca da noite escurecia ainda mais as águas do Amazonas, a indiazinha piorou: o corpo começou a arder em febre, os olhos avermelharam-se como fogo, o suor-frio umedecia o lençol feito de cortina, a cama rangia assustadoramente. Só a fala não dava sinais de piora ou melhora: permanecia muda. Com ela no quarto, os familiares e alguns comunitários benziam-se com o sinal da cruz ajoelhados de frente dos santos sobre a penteadeira. Nem as preces fervorosas acalmaram o espírito da jovem. O medo tomou conta de todos. Afinal de contas, que mal era esse que possuía o corpo da pequena cunhatã? E eis então que resolveram chamar inicialmente o padre. Porém, uma velha tapuia advertiu que aquilo não era assunto de homem de igreja, e sim de quem sabia desfazer quebranto. Chamaram então a benzedeira.
A benzedeira não tardou a chegar. Era uma senhora tipicamente cabocla: usava vestidos longos ornados com muitas sementes, no pescoço levava sempre um colar de olho de boi (semente da nossa região) para espantar possíveis quebrantos. No calcanhar prendia um dente de jacaré para salvá-la das picadas de cobras na mata. O semblante era assustador: olhos escurecidos, dentes amarelados. Consequência do tabaco que mascava como se fosse chiclete. Os cabelos definiam-se num amontoado de fios. Se por um lado faltava-lhe beleza, por outro, sobrava-lhe o dom de decifrar os mistérios que envolvem a alma humana. Assim que entrou na casa - uma tapera de paredes de taipa, teto de palha e assoalho de paxiúba - bateu o barro das sandálias no batente da porta feito de tampinhas de refrigerante. Entrou direto no quarto. Já conhecia bem a casa. Puxou de uma sacola velha que trazia um livrinho de capa amarelada e folhas gastas. Aproximou-se bem da moça. Com as mãos enrugadas sentiu cada parte daquele corpo esquio. Demorou mais na região da barriga. Com grande experiência, a benzedeira nem precisou fazer reza. Guardou o velho livro. Pediu que só a mãe da jovem permanecesse ali. O caso era de família! Sem delongas perguntou a mãe da jovem desde quando aqueles sintomas começaram a se manifestar. A mãe gaguejou na resposta. Mas ainda conseguiu dizer que achava que tudo começara dias antes da filha iniciar namoro. Namorar! Exclamou a velha benzedeira. E é namoro de futricamento? Perguntou.
Por aquelas bandas do amazonas, antigamente, as mulheres casavam moças. A indagação ofendeu a mãe que crente na honra da filha respondeu negativamente. Só depois que a benzedeira afirmou se tratar de caso de homem a mãe forçou a filha a revelar o nome do caboclo. A jovem tapuia cuja fala não havia perdido e que, apenas em casos como esse, fingi-se de muda, nem o nome do garboso mancebo soube dizer. Apenas uma descrição de leve conseguiu lembrar-se: “ele usava na maioria das vezes um terno de linho, chapéu de abas, um vistoso relógio”. E mais: confessou que todas as vezes que namoravam sentia-se seduzida por um forte cheiro de patichuli, que se (misturava) confundia a um forte piché. E nem sabe Deus como, adormecia e acordava sempre a margem do rio pela metade da madrugada. E quando dava por si corria em disparada para casa.
A benzedeira ouvindo todo o relato da jovem não titubeou no diagnóstico. E secamente afirmou se tratar de caso de homem. Mas que tipo de homem...? Pensou solitariamente.
A mãe ao ouvir as palavras da velha injuriou-se de tanto ódio. Mas o que fazer? O mal já estava feito. O que a filha tinha de mais importante perdera. O jeito em tão era tocar a vida. E esperar... Esperar. Talvez pensasse a mãe. Mistério então resolvido? Se fosse na capital pedia-se DNA na justiça e logo se saberia quem era o pai da criança. Só que por aquelas terras a coisa é bem diferente. Primeiro, espera-se a criança nascer para daí saber se o caso foi só de desonra, de feitiço ou de encantamento. E que Deus a livre deste último.