Fernando Canto.
Aqui, onde esse homem engole a dor rumina prantos existe a mansidão latente de quem domina o sofrimento.
Não é um homem comum esse daí. Ele não escarra secreções de agonia nem solta centelhas de ódio. Ele é assim: um passante carregando a dor na sua mochila, paciente como um burro de cargas.
O seu rosto não exprime desalento. É mais que enigmático, pois a dor que leva parece ser um fardo que não lhe pertence. É como carregar um objeto de favor a alguém cansado. Nada abate ou fere esse homem de trajes rotos. Ele é um passante carregando a sua dor.
Eu conheço esse homem. Há tempos ele passa aqui para ruminar sua dor. Ele só. Sozinho. Seu semblante muda apenas quando ingere a dose contumaz de boa cachaça. Não resta dúvida que o álcool lenifica o corpo dolorido e alma atormentada. Às vezes ele senta na calçada e fixa os olhos acima dos fios de alta-tensão. Mas não, não me perguntem, acho o suicídio não é o seu objetivo. Ora, ele anda, bebe, senta e se ensimesma, absorto, lembrando coisas que eu sei pelos jornais. Portanto, dar cabo de sua própria vida não teria o beneplácito de seu ser, que embora prenhe de agonia não transparece. E eu confio nesse homem.
A sua dor advém do brutal, do trágico e crescente fenômeno da violência urbana. Massacraram-lhe a família e lhe roubaram tudo. Humilharam-no com as mais hediondas formas de tortura. E ainda há sequelas desse crime: a perna arrasta e as mãos tremem à vista de qualquer um. Ele passa, esse homem: É um sobrevivente da antropofagia das sociedades ditas modernas.
Quando anda pelo bairro nem liga para as chacotas dos moleques, dos rapazes que lhe atiram mangas podres. Apenas pára e os observa com olhar de comiseração. Chamam-lhe de “Estrondo”, de “Lampejo “, pois tem voz grave e costuma focar as árvores da praça com um pedaço de espelho nas tardes de verão.
O nome dele poucos sabem. – Sou um destes. Chama-se Anjo, não obstante a dor e o fardo inconvencional. Para ele o peso se tornou tão leve que parece fazer parte de sua paisagem corporal. Sem a dor que carrega ele não é homem … nem anjo.
Seja anjo ou homem passa arrastando a perna gasta de tantas caminhadas. É a única característica de um homem que vive enfrentando provas e ultrapassando suas próprias barreiras. Também é só. De sua lassidão oculta só ele e eu sabemos, porque o acompanho há muito e tento aprender a lição de enfrentar a dor e ruminá-la sem estendê-la a outrem.
Malgrado a condição de anjo e o rosto de pedra, voz grossa e a mania de refletir a luz nos frutos das mangueiras, não há nada mais sereno que seu olhar de guardião do seu próprio sofrimento, porque ele sabe que toda dor que nasce do azedume procria ranço que não dilui na fervedura do amor ainda guardado no coração, nem na chuva de flores atiradas a esmo por filantropos hipócritas. Ele sabe – e com ele aprendo – que a dor se professa em si mesma e em silêncio, pois ela é como reima, é combustível estocado para enfrentar os percalços da vida.
O Anjo não atalha nenhum caminho. Ele passa aqui e arde, absorvendo toda a dor do mundo dentro do peito e da mochila. E por andar tanto, deve ter uma hora para o descanso. Ali, então, talvez encoste o peso de sua dor e sonhe um mundo cristalino e justo, pois se sua dor é atributo de homem, no sonho é a certeza de voar leve como qualquer anjo de sua estirpe.