Fernando Canto.
"Sim sinhô, tamos saindo de novo de mais um porto de carga, partindo em busca de um outro no constante vai – e – vem que a nossa vida comanda. Nós aqui que se defenda do destino! Se a gente come ar, água barrenta e jabá com farinha é porque Deus tem querença e nós só temos que obedecer, rezar sempre que puder pra não ter a sorte de peixe na rede do pescador.
“Já é noite velha e fechada por um tempo enegrecido com cara de tempestade. Já é mais uma entre tantas a deslizar nas águas benditas destas paragens que nos servem pro trabalho e pros despachos das coisas que não precisamos mais. É noite fechada, é sim… sem hora, descaminhada, prenha de vento forte e que judia a solidão mais amiúde que um homem saudoso tem…
“Sim sinhô, é duro ter mãos calosas, pé rachado e cicatriz das cargas que bem carrego, desde jito, lhe asseguro, pensando e ter bem dinheiro pra dar uma casa ao pai na velha Vila Formosa de Bom Jesus do Anaju. Minha vida é o que carrego cada vez que o barco sai, toda vez que o barco chega e toda vez queu me arrependo.
“Saudade não tenho tanta da minha infância, eu agaranto. Sempre fui acostumado com a dureza do trabalho, mesmo ficando aos poucos taludo, entanguido e forte, mas-porém malandro e astuto desde as primeiras pontes, canoas e remos de tábua.
“Tenho visto muita coisa neste mundo encarquilhado, coisa do arco-da-velha e cores desencardidas. Só não vi padre fuder freira nem piramutaba ovada. Mas visage, isso então… Nem lhe conto, pra que não pense o sinhô queu sou desses mentirosos. Desde jito, quero que Deus me cegue… vi mato pegando fogo nas ribanceiras dos rios, gente gritando muito debaixo da chuvarada de bala da jagunçada que vagueia atrás de sangue a mando dos coronéis. Vi muita lepra perversa em forma de home comum aumentando dia-a-dia nos trapiches que aportei, como uma vez na Estrada Nova quando pediram um cigarro pro dono do barco Olavo, da terra de Cametá. O rapaz que nem fumava morreu de treze facadas só porque não tinha pito e nem pôde se arrepender.
“Não senta na minha ilharga gente malina e rude. Eu olho logo de esguelha, desconfiado do besta que procura confusão. Eu tomo minhas cachaças sem ter preferência à marca, todavia, lhe garanto, nunquinha caí de porre.
“Dei serviço em muito barco, já tive muito patrão, faz quase quarenta anos que rolo por cima d’água. Não quis me casar, o sinhô sabe, meu tempo foi pro trabalho, e mesmo eu não tenho casa e a maorparte dos meus parentes já foram encontrar com Cristo na morada celestina, onde só tem convite que foi nesta vida humilde. Assim nunca me arrependo de não ter me amasiado com rapariga festeira nem com mulher assanhada. Umas três já declararam que ficaram prenha deste, pois eu lhe conto, não nego, que também não sou santinho.Só sei que nunca fui pai nem padrinho de menino nos lugares onde parei pra carregar esses trabalhos, descarregar minha gala, trocando o óleo da pomba… Humrum! Molhar o osso, seu menino, é preciso praticar, senão a cabeça endoida, fica bilé, bilé. A gente fica mofino, não dá atenção pras coisas e com calo na mão não presta bater punheta nas folgas. Vara de macho escroto precisa de bem carinho e basta só um pouquinho pra entrar nas perseguidas e se lambuzar de prazer.
“Sim sinhô, tô divagando… Me adesculpe se lhe enjôo com esta conversa fiada. É queu vivo me acercando das coisas do meu redor como desta noite feia. Arrepare que tem lua pra nascer daqui a pouco, minguando, mais ainda grande, que vai ajudar com imenso nossa longa travessia por cima desta baía. Vigie ali rés à mata a chegada de um clarão: é ela empurrando as nuvens pra cair logo uma chuva e o barco seguir em paz. Antes que a chuva venha, se ajunte mais pra dentro deste comando apertado, se aproteja do frio que judia a gente e dos solavancos das ondas que neste vento paresque até banzeiro espumante do catamarã da Enasa. Depois da procela forte vem um pouco de chuvisco e as ondas vão se acamar, daí chega a lua branca e eu ainda posso ver á frente sem precisar de farol. Eu moço já andava em barco que não tinha nem motor, nem bússola ou farolete, daqueles movido a vento, onde a gente se guiava pelos lugares que via. Só conhecendo, velava e se livrava dos troncos arrancados dos barrancos.
“Inda mais… Me lembro que já passei por maus momentos, indizíveis, apelando para a Virgem na hora da morte certa, como daquela vez, paresque numa baía chamada Curralinho, quando o casco do barco abriu ao bater numa jangada de troncos, solta e perdida no negro da escuridão. Dessa vez não teve tempo pra desviar do perigo. Morreram cinco pessoas. Consegui salvar só duas que levei lá pra beira em cima de um camburão de óleo combustível.
“Meu parente, se não é a Virgem no céu, os marítimos se estrepam aqui na terra. Coisa ruim só acontece conosco, gente sofrida do mar. Perdi muitos companheiros que foram pras profundezas destas águas amarelas onde vive boto e Iara, boiúna e cobra Sofia.
“Mas quando já…! O sinhô pode pensar. Não creio nessas conversas. Há de dizer o parente. Mas lhe garanto uma coisa: este rio tem tanta água como ente que judia. Já vi coisas, seu menino, que penso não acreditar, por isso prefiro a morte que me arrepiar de medo quando enfrentasse, ‘sconjuro, gente que não desse mundo.
“Espie só a chuva passando. Agora que só tem lua e um mar calmo pela frente é que vem na minha mente uma figura ‘stimada de um homem sempre presente no meu imparável trabalho.
“Não arrepare se eu falo assim meio ‘stúrdio, mas dentro de mim vem uma dor afogalhada toda vez queu cambo meu pensar pra esse lado. Talvez o sinhô tenha tido algum patrão na vida. Não sei se lhe importa eu soltar minhas mágoas que me atormentam benzinho no fundo da minha alma. Tome um café, me escute e não arrepare essa dor”.
“Tordia fiquei macucando… pensando na minha vida, no meu destino de boto que paresque é fazer as coisas e desaparecer nas águas. Já vi que tem parecença com as ondas e com tudo do meu redor. É como se eu fosse mururé dançando n’água, planta que tem flor roxa e folha verde e se assustenta do rio. Vai pra onde a maré bate, mas continua pelo rio até bater numa praia, se dividir ou se somar nos troncos da aningueiras ou na hélice do barco despedaçar de vez.
“Não quero ter descamaradagem com a figura do patrão, porém já sofri bastante vendo ele ficar alegre ao conferir o dinheiro que o nosso trabalho dá. Queria ver eles sem nós. Só com seu barco, só ele navegando por aí, debaixo da tempestade. Tá, cheiroso! Eu ia dizer, vendo a sua cara torta. Te vira, seu porcaria… Eu ia era rir. Hum, ele não teria mais aquele riso indecente cheio de dentes de ouro nem os olhos miudinhos que brilham tal quando conta o lucro que o nosso trabalho dá. Disse ao sinhô queu ‘stimava a figura do patrão, mas ora já penso certo, acho que ele não merece queu pense dessa maneira.
“Muitas vezes ouvi no rádio que o Brasil era gigante, acho que é isso mesmo, devido ter viajado, conhecido muitas terras só aqui na região. Isso me faz pensar nas coisas deste mundão onde tudo é muito grande, mas os homens são sempre pequenos. Ninguém segura essa terra, disseram também no rádio, e largaram ela pruns homens de fala e de corpos estranhos. Era pra gente ir frente que a vida ia melhorar, mas só nós, os que navegam, nunca melhoram na merda desta vida, nem seguro dela tem, ganham salário mínimo, o menor, eu acho sempre, pois não dá nem-nem pra sacanagem nos puteiros de Belém, inda mais se, por exemplo, eu tivesse uma família pra assustentar por aí.
“Sim sinhô, me apustemo de trabalho, só vejo trapiche e cais nas margens que descarrego de um lado e doutro do rio. Tô ficando aporrinhado, tô me sentindo um ladrão querendo roubar as coisas, mas preso porque não roubou. Não digo que matei gente, mas minha vontade é enorme de arrancar os dentes todos do ‘stimado patrão. Égua! Égua! Se aguento tudo isso é porque não tenho estudo nem registro e a carteira da Capitania dos Portos. Não tive oportunidade nem incentivo pra essas coisas do ‘stimado patrão, que ganha nas nossas custas tudo aquilo que queremos pra gente viver um pouquinho sem depender de ninguém.
“Não tenho inveja, agaranto, e quero que me adesculpe se falo assim do patrão. Minha sina está nas águas deste rio que bem conheço, que é meu amigo bacana, mas-porém que é traiçoeiro quando a gente nem espera… Hum. Minha sina está com ele, o rio de toda uma vida, a única coisa viva que mais arrespeito e amo, meu calmante dessas horas de aporrinhação.
“Meu parente, eu falei muito das coisas que tanto vi, como da lua minguante que ora ilumina a nós e da figura ‘stimada do proprietário do barco que a gente navega aqui. Antes de acabar meu turno, antes de ir descansar, quero apenas lhe dizer que a minha vida é assim mesmo, paresque noite vergada, com vento e luar minguando, se acabando para o dia que vem chegando benzinho, trazendo o sol que só engelha o resto da dor da gente”.