Haroldo Figueira.
Meu irmão Otávio, residente em Manaus, é uma pessoa ligada nas coisas que acontecem em Óbidos, nossa terra natal. Por ele soube da realização de uma obra de engenharia que se propõe a rebaixar as falésias que se erguem a partir da beira-rio até o planalto mais acima, popularmente conhecidas como barreiras, onde se acha encravada a parte que é, talvez, a mais glamorosa da chamada cidade alta.
Particularmente, esse pedaço de chão, do piso ao topo, reaviva-me boas e gratas recordações. Trata-se de um território que conheço bem. Na parte mais baixa, por exemplo, zanzei demais pela orla estreita que vai das ruínas do cais até o comércio da família Hamoy, perímetro em que, pelo que pude deduzir, operam-se as mudanças em implementação.
O trecho deve perfazer pouco mais de 200 metros de extensão. Na parte inicial do segmento aconteciam os banhos de rio e as brincadeiras aquáticas realizadas pela meninada de então. Mais ou menos na metade, localizava-se a Pedra Grande, ponto de pescarias com linha comprida e onde, em épocas de piracema, fisgavam-se piramutabas, piracatingas e até douradas. Passatempo prazeroso, às vezes perturbado pelo enganchamento dos anzóis nos garranchos do fundo do rio.
Lembro que enquanto aguardava o peixe morder a isca ficava contemplando aquelas espécies de penhascos de tabatinga que se erguiam trinta, cinquenta metros acima. No terço final dessas escarpas, as arirambas faziam seus ninhos. Causava-me deleite observar a habilidade dessas aves que, em voos velozes e certeiros, mergulhavam nas águas do Amazonas, trazendo nos bicos os alimentos para o sustento próprio e de seus filhotes.
É lá em cima, contudo, no platô assentado sobre as barreiras ribeirinhas que a vida social da cidade flui com mais intensidade. Estão encravados, ali, prédios como a catedral de Sant’Ana, a Assembleia Recreativa Pauxis, a antiga delegacia de polícia e cadeia pública anexa, além de residências de moradores ilustres. Em frente à igreja, localiza-se a praça que leva o mesmo nome da padroeira dos obidenses, ponto de encontro de gente de todas as idades: da criançada e seus divertimentos, dos jovens e seus namoros, dos adultos e suas rodas de bate-papo. O lugar como um todo serve de palco para festas memoráveis, tanto religiosas, quanto seculares, para apresentações artísticas e outras manifestações culturais da comunidade. Tranquiliza saber que esse animado reduto não sofrerá alterações.
Já a faixa de terra que margeia os barrancos (situada na parte final do prolongamento da praça a que acabei de fazer referência), que vai dos limites do histórico Forte Pauxis até o restaurante Tucuruvi está destinada a desaparecer. Sentirei falta dela, não apenas pelas lembranças que me trazem dos tempos da meninice, mas também porque, do alto de suas bordas, mais precisamente no trecho à esquerda do antigo presídio, assistia-se ao espetáculo de um deslumbrante entardecer. Será que esse privilegiado mirante natural resultará prejudicado? Torço para que não.
Na extremidade oposta, as traquinagens praticadas na extensão do terreno lateral à ARP eram mais ousadas. A começar pela escalada do aclive com o fim de encurtar caminho entre a praia e a praça. Em sentido inverso, por conta do risco envolvido, tornava-se emocionante saltar em queda livre na ribanceira aterrissando em uma camada de areia fofa que se acumulara quatro, cinco metros abaixo. O único temor que tínhamos vinha das incertas que o cabo Gervásio, diligente policial militar, costumava dar no local, repreendendo-nos por conta do perigo de acidentes e ameaçando levar tais peraltices ao conhecimento dos nossos pais. Quando ele resolvia cumprir a promessa, a aventura acabava em surra.
Talvez se faça oportuno esclarecer a origem desse colchão arenoso. Tempos atrás, a área passou por um serviço de terraplenagem. O entulho resultante foi despejado no fundo do barranco. Falava-se, inclusive, à época, da descoberta de um cemitério de índios, inclusive de ossadas dos povos originários, algumas depositadas em vasos de cerâmica. Se os rumores procedem, aonde teriam ido parar esses restos mortais? Não faço ideia, mas gostaria de saber.
Reconheço-me um saudosista. Isso não significa, todavia, que seja refratário a mudanças. Pelas informações que me chegaram, o esperado é que o rebaixamento das barreiras dê lugar a uma estrutura rampeada, com melhor aproveitamento espacial, inclusive, ao que parece, favorecendo a mobilidade urbana. As rampas receberão cobertura de grama e a faixa à beira-rio deverá ser pavimentada, permitindo a circulação de pessoas e veículos. Ora, desde que o meio ambiente não sofra danos e haja ganhos tanto para o aspecto paisagístico da cidade quanto para o bem-estar da população, então que a reforma seja bem-vinda.
Doravante, os viajantes que trafegam de barco descendo o Amazonas, procedentes das bandas de Manaus, não se depararão mais, minutos antes de atracar no porto obidense, com aquele paredão nu, desprovido de vegetação e visualmente pouco atrativo. Em seu lugar encontrarão uma edificação de traçado moderno, bem mais bonita de se ver e admirar. A conferir.
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