Ademar Ayres do Amaral
Quase igual às mulheres dos meus amigos, a minha também só quer saber de dar a partida no carro e tocar a vida nos seus diversos afazeres como dentista da prefeitura ( por concurso público; quem tem emprego público na minha casa, foi por concurso), como dona do seu consultório e como presidente do CIEES, o Centro Integrado de Educação Especial, uma escola para deficientes, onde estuda o meu amado Ademarzinho, que é portador da Síndrome de Down. Este um trabalho voluntário que ela faz com o maior prazer.
Mas o que eu queria mesmo contar é que ontem, sábado, me dirigi à RR Pneus, ali na esquina da Alcindo Cacela com a Pariquis, a um quarteirão de onde moro, para trocar os dois pneus dianteiros do Corolla da minha esposa. Se o Célio, um dia, passar por lá, vai certamente recordar de noitadas intensas, pois a loja fica exatamente onde era o antigo Pagode Chinês. Entrei, fui bem atendido, troquei os dois pneus dianteiros que não me davam mais tanta confiança para uma viagem a Salinas, balanceei as rodas e mandei alinhar, tudo no figurino e por “módicos” R$ 1.100,00, de cinco vezes, no cartão de crédito.
Sempre sou eu quem cuida dessas coisas. Com exceção das revisões do carro, que minha esposa nunca esquece, ela não liga muito pro resto, tipo pressão e desgaste dos pneus, abastecimento de combustível (por ela, sempre na reserva, o que me faz ir religiosamente ao posto, nos fins de semana, sabendo que andar na reserva puxa a sujeira do fundo do tanque e diminui a vida útil do motor).
E foi para uma dessas providências, que eu me dirigi ontem à loja da RR para trocar os tais pneus dianteiros. Serviço concluído, voltei contente pra casa, deixei o carro guardadinho na garagem e fui me dar o prazer de assistir ao jogo do Manchester City com o Chelsea, enquanto aguardava a chegada dos netos para o costumeiro fim de semana. Netos foram o maior presente que eu ganhei da Natureza, que é o nome que eu dou para aquela Energia Suprema que chamam de Deus. Como escreveu Dostoievsky, em Crime e Castigo, sem a presença Dele, o homem poderia tudo, das ações normais às mais criminosas. Deus é tão importante para o controle da humanidade, que senão existisse precisaria ser inventado. Chamo a Natureza de Deus, porque Ela é a única que bate com a definição do nosso velho catecismo: um Ser infinitamente bom e perfeito, que nunca teve começo e não terá fim. Nessa definição, só vejo a Natureza, que ainda leva a vantagem de ser uma figura feminina.
Terminei meu sábado assistindo A Vida é Bela, um filme italiano espetacular, ganhador de Oscar, e fui dormir rezando meu velho Pai Nosso, a oração que Cristo nos ensinou e a que mais me toca. Tive uma noite boa, sonhei pescando com meu pai no Lago Mole, mas logo ao acordar, fui chamado pelo porteiro do prédio, para informar que o pneu dianteiro do carro da minha esposa (exatamente um dos que troquei ontem) estava completamente seco. Eram oito da manhã e como sei que borracheiro nunca trabalha antes das nove horas, tomei meu café tranquilamente e comecei a raciocinar de como iria resolver o problema num domingo. Borracheiro trabalha domingo?
A primeira ideia era levantar com o macaco, substituir o pneu pelo reserva e ir num borracheiro. Simples, mas nem tanto. O problema é que há muitos anos eu não troco pneu e quando isso acontecia era o do meu fusquinha, mas eu era jovem e a lombar ainda me permitia fazer qualquer das ginásticas que o caso requer. Desci o elevador com um plano bem agendado: pegar meu carro, um Golzinho, apanhar um borracheiro qualquer e trazê-lo para trocar o pneu do Corolla.
Foi aí que aconteceu o primeiro milagre deste domingo. A uns cinco metros do carro estava o Artur, assim como eu, um velho morador do meu prédio, observando a minha situação. Ele entende bastante de veículos, tem uma loja e oficina de motocicletas e sua especialidade são as famosas Harley Davidson, das quais ele é dos poucos em Belém que sabem cuidar. Ele se chegou, eu ali paradão, olhando a minha dificuldade. “Se eu tivesse uma bomba de encher pneus, eu enchia e chegava no borracheiro” – eu disse. “Tenho uma aqui - ele falou. Foi no carro dele, trouxe uma sacola e dela tirou uma geringonça portátil. Pediu que eu funcionasse o carro e que ligasse o conector no cigarro. Pois não é que a geringonça funcionou e em cinco minutos mostrou 30 libras (sim, a maquininha tem também medidor de pressão.
- Ei, cara, onde arranjaste isso?
- Com um motoqueiro francês – ele disse- consertei uma Harley dele e ganhei de presente.
- Pô, cara, queria ter uma dessa, quebra um galho danado.
- Tem na Oplima, é outra marca e um pouquinho maior que a minha.
Pneu cheio, agradeci ao Artur e me mandei em busca de um borracheiro.
O primeiro que procurei fica a meio quarteirão de casa, mas tudo estava no cadeado e o vizinho me falou que dia de domingo ele não acorda antes do meio-dia. Prossegui pela Pariquis lentamente e prestando atenção para localizar outro borracheiro. Em um lava-jato da esquina da Generalíssimo, fui informado por um lavador que havia um borracheiro no outro quarteirão. Nesse, encontrei um monte de pneus velhos na porta, mas tudo fechado. Na hora, lembrei de um borracheiro na Conselheiro, logo passando da Alcindo Cacela e resolvi voltar pela Mundurucus. Quando chego na esquina da Generalíssimo, passando o sinal, no lado direito, avisto um pneu pregado numa árvore com a palavra Borracharia. Parei em frente, havia uma portinha aberta, nenhum carro, nemhum borracheiro e nem ao menos um pneu velho na porta. Ao lado, numa vendinha de fruta, um senhor sentado. “ O senhor sabe do borracheiro? – perguntei. “Ele mora aí dentro, vou chamar”.
Uns minutos depois me aparece um senhor idoso e se apresenta como sendo o borracheiro. Deu vontade de pedir desculpa e sair, o homem, além de idoso, andava com alguma dificuldade e pensei que ele não ia dar conta do serviço. Expliquei o acontecido ele entrou, e trouxe logo dois macacos.
- Precisa de dois macacos? – perguntei.
- Sempre uso dois por questão de segurança, uma vez, anos atrás, o macaco escorregou e quase o carro cai por cima de mim. Com dois é mais seguro.
- E quantos anos o senhor é borracheiro?
- Mais de quarenta anos.
- Mas o senhor precisa de um ajudante.
- Nem pensar – ele disse – já tive dois, ensinei tudo e os dois me jogaram na Justiça do Trabalho. Agora, chefe, só eu e Deus.
Resumo do segundo milagre deste domingo. O velho foi lento, mas super meticuloso. Descobriu que o vazamento era pela válvula do bico. Trocou a válvula passou um pouco de cuspe e disse:
- Na loja que o senhor trocou o pneu eles não passam cuspe, que ainda é o melhor teste de vazamento.
Pneu recolocado, ele examinou os outros e descobriu que o cara da loja tinha calibrado com pressão 45 e recalibrou todos. Quando perguntei o preço, levei um susto bom. “Vinte e cinco reais”, ele falou. Paguei, mas achei absurdamente barato pelo trabalhão que deu. Aí lembrei que no porta-malas do carro ainda estavam os dois pneus usados que a loja tinha trocado. Abri o porta-malas e perguntei se ele tinha interesse nos dois pneus. Ele examinou, disse que pneu de Corolla é fácil de vender e que, se tivesse dinheiro, pagaria 50 reais nos dois. “Então pode tirar, os dois são seus, é presente”.
Ele me olhou emocionado e tentou me devolver cinco reais, deixando tudo por vinte, o que não aceitei. Afinal, milagre nem sempre acontece e eu fui beneficiado com dois milagres neste domingo.
Flávio, esse o nome do velho, mais um santo que a Mãe Natureza botou no meu caminho.