Haroldo Figueira
Hoje, 07 de setembro, dia da Independência do Brasil, a festa cívica maior do povo brasileiro reveste-se de significado especial por assinalar o bicentenário da efeméride. Coincidentemente, marca, também, o aniversário de Dona Áurea, minha pranteada mãe que, se viva fosse, estaria completando cem anos.
Mamãe, uma pessoa que tinha na humildade um dos traços característicos de sua personalidade, muito se orgulhava do dia do seu natalício. Julgava-se abençoada por haver nascido justo quando a nação celebrava o centenário do Grito do Ipiranga, ato político protagonizado pelo príncipe D. Pedro que os livros de história consignam como aquele que determinou a desvinculação definitiva de nossa pátria do reino de Portugal.
Muitas são as lembranças que me afloram à memória relacionadas com a passagem de minha mãe por este mundo. Há 20 anos, quando completou o seu octogésimo aniversário, nós, seus filhos, organizamos uma festinha em uma casa de recepções de Manaus, com a finalidade de celebrar o acontecimento. Compareceu bastante gente, público composto na maioria de pessoas integrantes de nosso círculo de amizades.
Recordo de quando adentrou o recinto da festa. Encontrava-se vestida com um conjunto azul, discretamente maquiada, “produzida” especialmente para a ocasião. Naquele momento, nada fazia lembrar seu visual costumeiro caracterizado pela simplicidade tanto no jeito de ser como no de trajar-se. Estava charmosa, elegante, mais bonita.
Na condição de filho primogênito, coube-me a incumbência de saudá-la e o fiz invadido pela emoção. Ao fixar do púlpito os olhos naquela veneranda senhora de cabelos brancos sentada na primeira fila, ladeada por meus irmãos e irmãs, percebi o semblante assustado que exibia diante daquele agrupamento de pessoas que para ali se deslocou no intuito de prestar-lhe homenagens. É que não estava acostumada a conviver com eventos cerimoniosos.
Falei, entre outras coisas, de suas qualidades, de nossa vida em família, do antes e do depois do desaparecimento de nosso pai, de o quanto foi difícil para ela desdobrar-se para dar conta das atividades do lar, de criar e educar sua numerosa prole, de prestar assistência ao marido de saúde frágil, enfim, da grande e batalhadora mulher que foi em vida.
Isso em um tempo em que os recursos disponíveis eram precários. Não havia as facilidades que paulatinamente foram sendo introduzidas pela modernidade, tais como utensílios básicos tipo fogão a gás, geladeira, máquina de lavar, ferro elétrico, etc. Saliente-se que, segundo o viés cultural dos idos de minha infância, às mulheres eram reservadas, quase que exclusivamente, as tarefas de casa, extremamente penosas devido às enormes carências da época.
Aduza-se, ainda, o fato de que por três anos teve de cuidar sozinha de sua mãe enferma, acometida de tuberculose, doença então de difícil cura que causava medo e afastava parentes e amigos, temerosos quando à possibilidade de eventualmente virem a contaminar-se. Para tanto, precisou isolar minha avó em um dos quartos da casa e ali fornecer-lhe alimentação, ministrar-lhe medicamentos, auxiliá-la na higiene pessoal, tudo isso sem prejuízo para os demais afazeres a seu cargo.
Para se ter uma ideia da dimensão do pavor social que a enfermidade pulmonar inspirava, ressalto que quando vovó Antônia morreu não havia quem se dispusesse a conduzir seu cadáver até o cemitério. A fim de que o sepultamento pudesse ocorrer, meu pai precisou contratar estivadores para o transporte do corpo.
No início de sua viuvez, mamãe sentiu-se como que sem chão, desnorteada, sem saber como seguir adiante, até porque não possuía experiência para lidar com demandas que não fossem aquelas ligadas às labutas domésticas. Nada obstante, pode-se avaliar que se saiu bem na nova missão. Enfrentou com garra e denodo os desafios que sobrevieram e conduziu a porto seguro o barco familiar cujo leme teve que assumir por força das circunstâncias.
Dona Áurea quando partiu para a eternidade deixou em seu lugar um vazio imenso, uma lacuna impreenchível. Insculpidos em nossos corações e mentes de filhos e filhas ficaram as boas recordações de sua figura materna diligente e amorosa, uma saudade profunda e um sentimento imorredouro de gratidão.
Acredito firmemente que a celebração de seu aniversário de cem anos não deixará de acontecer, só que, pelos méritos que conquistou em sua passagem terrena como boa filha, boa mãe, boa esposa e excepcional ser humano, há de realizar-se em um lugar melhor, situado no plano metafísico da espiritualidade, junto de Deus, na companhia de meu pai, dos anjos e dos santos, com direito às honras e glórias da Corte Celestial. Parabéns, mamãe!
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