Na mesa, é base de delícias da culinária paraense. Na indústria, componente de papel e embalagens, e usada até na purificação de minérios. E ainda nas farinhas, no polvilho da tapioca, no pão de queijo, na gelatina e nos embutidos, a mandioca mostra toda a sua versatilidade. Maior produtor nacional, com 5 milhões de toneladas ao ano, o Pará recebe pela primeira vez neste ano dois eventos voltados ao tema, um deles internacional, em que especialistas vão apresentar as mais recentes pesquisas sobre manejo, genética e aplicação. O XVII Congresso Brasileiro de Mandioca e o II Congresso Latino-Americano e Caribenho de Mandioca vão proporcionar a essa estrela da gastronomia popular o devido reconhecimento.
Um dos especialistas que virão a Belém é o sociólogo paulistano Carlos Alberto Dória, um dos maiores estudiosos da culinária brasileira, que vai abordar “A superioridade civilizacional da mandioca frente ao trigo europeu”. Para ele, a planta é o sustentáculo da alimentação na Amazônia, herança deixada pelos índios, que foi domesticada e até mesmo aglutinada pelas elites na época da colonização.
Esse grande consumo tem origem cultural. “É uma região que prefere comer mandioca a arroz ou milho, diferente do Sul e Sudeste, por exemplo. Por isso, também o uso é tão múltiplo. Da mandioca, na Amazônia, tudo se aproveita”, afirma Carlos Alberto Dória, destacando o tucupi preto como um dos melhores molhos do Brasil.
Produção familiar - A mandioca é crucial para a segurança alimentar, sobretudo na Amazônia, desde o Peru até o Pará, Estado onde 96% da produção são oriundos da agricultura familiar. Diretor do Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, Carlos Alberto Dória – cujo último livro, “A formação da culinária brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira”, derruba mitos, por exemplo, sobre a feijoada, que não teria surgido nas senzalas, mas no Rio de Janeiro no fim do século XIX, como receita de feijão enriquecido com carnes – comprova a diversidade da mandioca, usada não apenas na alimentação, mas também na indústria.
O papel dos indígenas, responsáveis pelo cultivo e primeiro uso da mandioca, é determinante na formação da culinária brasileira, mas com uma ressalva do pesquisador: essa participação é minimizada porque a história é contada a partir do ponto de vista do colonizador. “A arqueologia mostra que os grupos indígenas modernos se formaram no Brasil em torno de 2.500 anos atrás, perto de Santarém, no oeste do Pará. Dali eles migraram e ocuparam o País todo. Teve um braço, formado pelos Tupinambás, que atravessou o litoral e chegou por volta do ano 800 onde hoje é o Rio de Janeiro. Eles cultivavam a mandioca. Outro braço, composto pelos Guaranis, veio beirando a Cordilheira dos Andes e chegou a São Paulo, por volta do ano 1.000. Esses plantavam o milho. Criaram-se, então, duas culinárias completamente diferentes, e o Brasil se forma apoiado nesses dois amidos”, explica Carlos Alberto Dória.
Ancestralidade - Alcunhada de “rainha do Brasil” pelo historiador Luís da Câmara Cascudo, e “pão da terra” pelo padre José de Anchieta durante o período colonial, a mandioca está literalmente arraigada nas plantações – somente no Pará são 300 mil hectares de área cultivada – e na mesa do brasileiro. Essa presença quase onipresente tem explicação na história. Por pelo menos três séculos e meio ela se constituiu na alimentação do Brasil, especialmente onde a presença indígena era majoritária. A mandioca, hoje, é representada na Amazônia pela diversidade, mantida tanto por populações indígenas como por comunidades tradicionais.
“Avalia-se que a mandioca foi domesticada na América Tropical a partir de ancestrais silvestres. Essa domesticação deu-se provavelmente na região sudoeste da Amazônia, o que é corroborado por recentes análises genéticas. Os resultados de pesquisas arqueológicas revelam que, há pelo menos 4.000 anos, o cultivo da mandioca era bastante difundido na região”, informa a pesquisadora Márlia Coelho, do Museu Paraense Emílio Goeldi, que vai abordar no congresso “A importância das comunidades tradicionais para a cultura da mandioca e a soberania alimentar”.
A professora explica que a mandioca tem grande relevância na agricultura itinerante praticada pelos indígenas. O cultivo se dá, predominantemente, por estacas ou manivas (denominação na Amazônia brasileira), considerada uma prática mais antiga que o plantio de sementes.
O cultivo por manivas é responsável pela alta diversidade encontrada na Amazônia brasileira, uma vez que a seleção é feita de acordo com as características de maior interesse: melhor adaptação ecológica, qualidades agronômicas particulares (precocidade, conservação e produtividade, por exemplo) ou vantagens de uso (teor de fécula, fibras e cor da polpa).
Coautora de um artigo que identificou 52 etnovariedades de mandioca em comunidades localizadas na floresta pública estadual Gleba Nova Olinda, em Santarém, no oeste paraense, a pesquisadora destaca a importância dos saberes tradicionais locais associados aos recursos agrobiológicos, os quais devem ser considerados em ações de valorização do patrimônio cultural local. “A diversidade de etnovariedades de mandioca mantida nos roçados locais deve ser avaliada não apenas pela ótica de uma atividade econômica que se sobressai, mas como prática cultural, que deve ser reconhecida e valorizada por meio de novas formas de apoio às comunidades rurais”, defende a pesquisadora.
Ração e chocolate - O múltiplo aproveitamento da mandioca será um dos temas do congresso que ocorrerá em Belém, de 12 a 16 de março. Além dos vários tipos de farinha, do tucupi e da goma, que estão entre os produtos derivados mais consumidos pelo paraense, a raiz da mandioca é hoje aproveitada na alimentação animal. Ruminantes (bois e búfalos), aves e espécies monogástricas (como suínos e equinos) já comem rações produzidas a partir da fécula, o que representa economia para a agropecuária, beneficiando toda a cadeia produtiva.
Membro da comissão organizadora do congresso e da Diretoria de Agricultura Familiar da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap), a engenheira agrônoma Heloísa Figueiredo é uma entusiasta do tema. “A mandioca está onde a gente menos imagina”, ressalta, acrescentando que no evento serão apresentadas várias possibilidades de utilização. “Teremos, por exemplo, uma palestrante que vai falar sobre um chocolate feito com derivados da mandioca. A aplicação na indústria também vai ser destacada. O amido, hoje, é usado para fortalecer os fios nas tecelagens, para esfriar as brocas nos poços de petróleo e até na purificação dos minérios na siderurgia”, frisa a engenheira agrônoma.
Da mandioca tudo se aproveita, da folha à raiz, e os tipos é que definem como ela será consumida. É classificada em dois grupos: mandioca amarga ou mandioca brava, e mandioca doce, conhecida ainda por macaxeira e aipim. “Estes dois grupos são assim denominados em função da quantidade de ácido cianídrico presente nas raízes. A mandioca amarga tem alta concentração desta substância tóxica, necessitando passar por um complexo processamento para ser consumida, enquanto a concentração na macaxeira é bem menor, o que permite que esta seja degustada após cozimento”, diz a pesquisadora Márlia Coelho.
Para Heloísa Figueiredo, o XVII Congresso Brasileiro de Mandioca e II Congresso Latino-Americano e Caribenho de Mandioca são o momento certo para mostrar a riqueza do produto e a importância dele para o Brasil e o mundo. “Para Bill Gates, a mandioca é o vegetal mais importante do mundo. A fundação que ele coordena defende o uso desse vegetal, usando consultoria e tecnologia brasileiras, para combater a fome em países da África, onde essa questão ainda é uma realidade. Pela facilidade de produção e qualidade nutricional, é uma poderosa aliada contra a subnutrição, o que mostra seu caráter social. Ou seja, temos que discutir o assunto e colocar o Pará nesse cenário, mostrando a força da mandiocultura local”, afirma.
Pró-Mandioca
Durante o congresso, a Sedap vai lançar o Pró-Mandioca, Programa de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva da Mandioca, cuja meta é alavancar a produtividade em pelo menos 33%, chegando à média de 20 toneladas por hectare (hoje são 15 toneladas produzidas por hectare no Pará).
Em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Pró-Mandioca inclui, entre as ações previstas, o estímulo à implementação de fábricas de fécula, controle integrado de pragas, plantio direto, uso de variedades tolerantes à podridão das raízes, difusão do trio da produtividade, roça sem queima, calagem, adubação e mecanização leve.
Serviço: O XVII Congresso Brasileiro de Mandioca e o II Congresso Latino-Americano e Caribenho de Mandioca serão realizados de 12 a 16 de março, no Hangar – Centro de Convenções e Feiras da Amazônia, em Belém. Mais informações, programação e inscrições aqui.
Fone: Agência Pará