O Poderoso Senhor Mercado

O Poderoso Senhor Mercado

Haroldo Figueira. 

“Todo o poder emana do povo, que o exercerá por meio de representantes eleitos ou diretamente...” Assim preconiza o parágrafo único, do Artigo Primeiro, da Constituição Federal de 1988.  Esse preceito basilar da democracia insculpido na Carta Magna está ameaçado de virar letra morta. Ou já virou e ninguém se deu conta. Ao que tudo indica, quem diz o que o governo deve ou não fazer é um ente incorpóreo chamado mercado.  

O ente é virtual, mas quem de fato o domina e fala em seu nome são pessoas de carne e osso, no caso as donas do capital. O mercado exige reformas; sem a anuência do mercado não dá para tocar este ou aquele projeto governamental; não se deve contrariar a vontade do mercado; ouvem-se, rotineiramente, muitas expressões desse tipo formuladas por autoridades e especialistas em economia. Confiram o que disse, a propósito, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, no Fórum de Investimento 2017, realizado em 30.05.2017, em São Paulo: “A agenda da Câmara, em sintonia com a do presidente, tem como foco o mercado, o setor privado”; “a Câmara mantém a defesa da agenda do mercado”.

Como é sabido, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional projetos de lei e de emenda constitucional, de iniciativa do Executivo, propondo alterações na legislação trabalhista, previdenciária, bem como medida que contempla o contingenciamento dos gastos públicos. Quem as exige? O mercado, dizem subservientemente as autoridades que nos governam. O intrigante é que ninguém parece interessado em perguntar ao povo, que vai arcar com as consequências dos ajustes, se ele tem alguma coisa a dizer a respeito.

A maioria dos políticos está pouco se lixando para os 71% e 59% da população, respectivamente, que, segundo as pesquisas de opinião, desaprovam as reformas da previdência e trabalhista. Vê-se que para a esfera do poder vigora, também, a máxima bíblica: “ninguém pode servir a dois senhores”. Entre o eleitorado que os sufragou nas urnas tornando-os seus representantes e os agentes do mercado que financiaram suas campanhas, dá para perceber para que lado eles se inclinam.

Não sou totalmente contra as reformas em discussão. Acho que há fatos novos que justificam a adoção de providências corretivas. Fica claro, por exemplo, que com as pessoas vivendo mais e em melhores condições de saúde torna-se razoável que o limite de idade para a aposentadoria aumente. Também concordo que contribuições para sindicatos, tanto de trabalhadores, quanto para os patronais (incluindo o Sistema S), passem a ser voluntárias e não compulsórias.

Discordo, todavia, de vários pontos polêmicos, como o que, em nome do funcionamento do sistema previdenciário no futuro, dificulta-se o acesso a aposentadoria para uns, mantendo-se, porém, os privilégios de outros. Ou o que estabelece a prevalência do acordado sobre o legislado nas negociações entre patrões e empregados. Entendo que a correlação de forças entre capital e trabalho é desigual, em desfavor da parte que congrega os trabalhadores.

Mas o que não dá para aceitar, passivamente, é o açodamento com que essas medidas estão sendo conduzidas no âmbito de um Parlamento desacreditado, com boa parte de seus integrantes envolta em denúncias de corrupção, sem levar em conta a opinião de milhões de cidadãos brasileiros, justo aqueles sobre os quais pairam as ameaças de supressão de direitos histórica e arduamente conquistados.

Examinemos mais a questão dos gastos públicos. Pouca gente discorda de que sua contenção é necessária, entre outras razões porque nas esferas administrativas das três instâncias federativas gasta-se em demasia e muito mal. Além do mais, não dá para conviver, o tempo todo, com orçamentos operando no vermelho. Só que a conta envolve despesas e receitas. Apertar o torniquete apenas no lado dos gastos e nada fazer para otimizar a arrecadação não me parece que vá resolver o problema. Saúde, educação, segurança, serviços públicos de cuja precariedade a população se ressente, não podem continuar ainda mais sacrificados com a falta de recursos.

Não estou apregoando o aumento dos tributos já existentes. Reluto em aceitar, contudo, que isenções tributárias sobre lucros e dividendos recebidos por acionistas e donos de empresas permaneçam intocáveis. Entra governo, sai governo, o grande capital não é adequadamente taxado e pouco se ouve falar ou se vê de efetivo no combate à sonegação de impostos.

Sobre o tema, vale lembrar que associações empresariais espalharam painéis eletrônicos pelos grandes centros urbanos, com o objetivo de chamar a atenção da coletividade para o tamanho da carga tributária do país. São os famosos “impostômetros”. Tudo bem, só que deveriam adotar idêntica providência e divulgar em telões assemelhados – que poderiam chamar de “sonegaciômetros”- o volume de tributos e contribuições sonegados aos cofres do erário, destinados à Previdência, inclusive. A dimensão da tunga e quem é que está por trás, certamente causariam muita indignação.

Não sou especialista em questões econômicas e gostaria de acreditar que as alardeadas medidas modernizantes darão conta de colocar o Brasil na rota do desenvolvimento sustentável. Tenho cá minhas dúvidas. Alinho-me, pois, com os que defendem que o esperado salto de qualidade na economia virá, principalmente, com o aumento da produtividade via educação de qualidade e investimentos em ciência, tecnologia e inovação. Autoridades e defensores das reformas calam sobre o assunto. Sem isso, contudo, creio que corremos o risco de insistir no que os economistas jocosamente apelidaram de crescimento voo de galinha: baixo e de curta duração.

Natal, 2 de junho de 2017.

Adicionar comentário


Código de segurança
Atualizar