A DESFEITEIRA DO SACACA

A DESFEITEIRA DO SACACA

Jorge Ary Ferreira*

Do final da década de sessenta, até o início dos anos noventa, funcionou em Óbidos um estabelecimento comercial localizado na esquina da Tv. Eloy Simões com a Rua Dr. Picanço Diniz - O BOTECO DO SACACA.

Ali se vendia tudo: laranja, tabaco, feijão, farinha, piquiá, marisarro, jucá, murapuama, leite de amapá, assacú, seiva de jutaí, suínos, capivara, carneiro, bode, além de outras iguarias regionais.

Diziam, os mais exigentes, que o ambiente não possuía higiene. Porém, era irresistível o cheiro bom do porco assando no final das manhãs. Lá, eram feitos churrascos que serviam para tirar os gostos das “lamparinadas” de cana Santa Cruz que os assíduos freqüentadores apreciavam, sem nenhuma moderação. 

Sacaca era um homem de pouco estudo, mas de um repente muito inteligente. Sempre tinha uma resposta na ponta da língua para todas as ocasiões, deixando, muitas vezes, seus companheiros desconcertados. Adorava satisfazer a coceirinha das suas costas com a ponta da faca que usava e tinha sempre de um pedaço de saca de trigo pendurado num dos lados do ombro, que lhe servia para enxugar o suor, limpar o balcão, enxugar os copos e etc.

As más línguas dizem que, certa vez, discutindo com um médico de nossa cidade fez com que o Doutor perdesse a pose e lhe chamasse de burro. Sentindo-se ofendido, não deixou esfriar, respondendo:

 - Olhe Dr., eu posso ser burro na sua profissão, mas o senhor não sabe fazer um paneiro ou tecer um tipiti. Pois saiba que, na minha profissão, o senhor também é o burro.

A estória logo correu de boca em boca e toda vez que perguntavam sobre o caso, ele respondia com o seguinte verso: 

EU SEI FAZER PENEIRA, TIPITI E ARAPUCA

E QUANDO ESTOU APORRINHADO, DOU UM SOPRO PELA VENTA QUE ALÍNGUA DANÇA MAZURCA. 

Nas festas juninas, os participantes das desfeiteiras - manifestações folclóricas da nossa região, costumavam declamar versos que tinham objetivos de exaltar a si próprios, ou tirar um sarro dos parceiros, e Sacaca sempre usava esta quadrina: 

 EU SOU UM NEGO,

MAIS SOU NEGO DENGOSO,

PIMENTA DO REINO É PRETA, MAS DÁ CALDO GOSTOSO! 

E assim a vida continuava. No “point” do Sacaca, freqüentavam, assiduamente, alguns personagens especiais: Riri, D. Eduwirginia, Pinto, Zé Pitiú, Có, Josué, D. Febronia, Cachorra Preta, Nando, Tenka, Guaraci, Piza, Pinto, Zunga, Tio Olaia, Jeca, e D. Miçanga, que era uma senhora de estatura mediana para baixa, freqüentadora dos blocos de carnaval. Somente a ela o Sacaca temia, porque, assim como ele, tinha pensamento rápido e língua afiada e vez ou outra pegava no pé de seu parceiro repentista.

Certa manhã, já com o tira gosto na brasa e a cana correndo no bar, Sacaca, que sempre era o centro das atenções, faceiro, contava suas anedotas, quando um amigo o intercedeu dizendo:

Sacaca, deixa de papo furado, tu és só goela. Olha lá, a Miçanga já vem vindo e vai acabar com a tua prosa.      

Sacaca firmou a vista no rumo da Prainha, viu D. Miçanga subindo em passos lentos rumo ao local, e disse:

Deixa comigo. Hoje ela vai ver com quantos paus se faz uma jangada.

Rapidamente, combinou com os amigos que ali estavam, que, assim que ela chegasse, entoassem aquela “musiquinha” tradicional da Desfeiteira - ritmo usado pelos repentistas das quadrilhas. Apostou que iria botar D. Miçanga em seu devido lugar.

Os amigos cantarolavam e batiam na palma da mão, quando D. Miçanga chegou ao local. Entendendo o convite, mesmo desprevenida, topou a parada e o desafio começou: 

SACACA :    

SE ENCONTRARES A MIÇANGA 

DÁ A ELA O MEU RECADO

PRA ESPERAR O SACAQUINHA

NO LUGAR ACOSTUMADO 

MIÇANGA:  

CANTADOR QUE TÁ CANTANDO

COM LENCINHO NO PESCOÇO

FAZ LEMBRAR O MEU CACHORRO 

        NO CUVÃO ROENDO OSSO. 

 

SACACA:     

EU JOGUEI MEU LIMÃO N’ÁGUA

DE MADURO FOI PRO FUNDO

TIREI CARTA DE MALANDRO

CERTIDÃO DE VAGABUNDO 

MISÇANGA:

SAI DAÍ SEU FEDE-FEDE

SEU CATINGA DE MUCURA

SE NA VIDA TU JÁ FEDES

QUE DIRÁ NA SEPULTURA 

SACACA:     

NÃO ADIANTA TEU ORGULHO

EM A TUA IMPOSIÇÃO

EU JÁ FIZ A TUA CAMA

COM FOLHAS SECAS DO CHÃO.           

MIÇANGA :

SE FIZESTES MINHA CAMA

COM FOLHAS SECAS DO CHÃO,

EU JÁ FIZ UM BALADOR

COM A "PELHA" DO TEU CULHÃO 

SACACA:     

MISSANGA MINHA MISSANGA 

ME DA O TEU PIRIQUITINHO,

SE TIVER MUITO PELADO

PODE ATÉ DEIXAR NO NINHO 

MIÇANGA:  

TE DAR MEU PIRIQUITINHO

SÓ SE ESTIVESSE MALUCA,

TU JÁ NEM TÁ DANDO CONTA

DA TUA POMBA CADUCA.     

Percebendo que não adiantava insistir, Sacaca desistiu do desafio, entoando um verso que admite a derrota, sob as vaias da platéia em delírio. 

CANTADOR QUE CANTA E PÁRA

TEM O PÉ DE CAPIVARA. 

 D. Febronia, mulher intrigueira, assistia o desafio e achou por bem entrar na briga, cantando para o Sacaca, na tentativa de animá-lo:

FEBRONIA:

EU CRESCI MOÇA DONZELA

LINDA COMO UMA FLOR,

CASEI COM SETE MARIDOS

E VIRGEM AINDA HOJE SOU

SACACA:

ESPERE AI MINHA SENHORA 

O MISTÉRIO AGENTE EXPLICA, 

OU A SENHORA NÃO TEM BUCETA, 

OU SEUS MARIDOS NÃO TINHAM PICA. 

Com essa, D. Febronha ficou como perdedora e a platéia foi ao delírio, afinal, o Sacaca saiu-se vencedor, mesmo tendo sido derrotado pela outra personagem.

E a cana rolou além da conta. O Riri tratou de pegar o pandeiro e entrar na roda.Tudo estava resolvido. Nossos humildes personagens continuaram a dançar e cantar, carregando, na essência, a riqueza de espírito e a pureza que lhes tornam nobres.

Pena que poucas vezes percebemos a existência de pessoas como essas.   

*Óbidos-Pa 11-05-2007 Jorge Ary Ferreira e Zé Maria Tavares.

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