A noiva de maio

A noiva de maio

Ademar Ayres do Amaral

Josefina era uma azarada. Seu primeiro noivo, um desses marreteiros que vagueiam de festa em festa pelas cidades do interior, deixou-a a ver navios, ou melhor, a ver regatão na porta da igreja. Foi também seu primeiro homem.

 

Com promessas de casamento e outros babados que os malandros conhecem bem, arrancou-lhe, como se dizia, o cabaço, em plena festa da padroeira, ao sabor de um baião que o alto-falante mandava pro ar.

Virgindade ida pro espaço, Josefina fez logo o teste com o safado:
– Cumé qui é: casa ou num casa?
– Mas claro, né? Promessa é dívida e…
– Vê lá, hein !? Se papai descobre…

Cabe aqui um sutil, porém importante esclarecimento: o pai verdadeiro era pai de criação. Josefina era órfã e foi trazida nos braços do compadre Basílio lá das bandas do Juruti Velho.
– Me deram, cumpadi, o sinhô num qué criá? Eu e a Pachica já temo o Isolino. Cês num tem filho e bem que era uma distração pá cunhada Joca.

E assim a menina foi adotada e criada, justiça se faça, na base de muito capricho e carinho.

Marcaram o casamento para o dia derradeiro da festa, tempo ainda do malandro usar e abusar do produto, aproveitando da maior liberdade que os pais costumavam conceder quando a cerimônia se aproximava. Mas o distinto, que de bobo nada tinha, deixou Josefina, como dissemos, a ver regatão, no qual o pretenso marido pediu passagem na madrugada da véspera e se mandou para algum endereço desconhecido da selva urbana de Manaus.

Claro que no dia do casório houve aquele estalar de dentes raivosos como sempre acontece num caso como esse. Depois, com o passar do tempo senhor da vida, e como acontece com os corruptos da alta esfera da República, o assunto foi desanuviando e perdendo espaço na família, menos, é claro, para a mente infeliz da pobre Josefina, a guardiã do maior segredo. E poucos podem imaginar, nos dias de hoje, o que significava, nos anos 1950, uma mulher desvirginada. Por isso e com justa razão, ela, mais do que ninguém, já pensava num substituto.

Josefina tinha bons atributos e o segundo pretendente não tardou a aparecer. Era fotógrafo profissional. Estúdio e laboratório de revelação funcionavam num pequeno barco que parava em cada porto de rio onde houvesse um potencial cliente.

Naquele tempo, um fotógrafo nas beiradas era sempre uma ave rara. O mais comum eram fotos individuais da cintura pra cima, encomendadas em belas molduras com retoques milagrosíssimos e capazes de transformar verdadeiras cavernas em narizes super afilados. O contraste era de tal ordem que não era anormal um visitante desprevenido adentrar num casebre e tentar ser agradável com a clássica pergunta:

– Bonita foto, de quem se trata?

O fotógrafo apareceu um dia e aportou no pequeno trapiche e no coração carente da Josefina. Ao fazer belo trabalho, transformando a futura sogra de descendência cafusa em quase símbolo da raça ariana, logo ganhou regalias de membro da casa e fez daquele porto uma nova morada.

Por conta da situação, passou a viver como um parasita: refeição na hora certa, roupa lavada e os carinhos noturnos da Josefina.

O casamento foi marcado, tudo prontinho, vizinhos convidados e… pasmem!, como um pato de Círio, não é que o noivo achou de bater as botas na véspera? Foi encontrado durinho na rede, descoberto pela sogra depois de chamá-lo três vezes para avisar sobre a hora de ir à capela para a necessária confissão.

O coração fraco do retratista não aguentou e Josefina passou a luto fechado como uma viúva machadiana, vertendo lágrimas aos porrilhões pelos cantos da casa. Mas não tardou muito e surgiu um terceiro candidato.

Quando o terceiro pretendente apareceu, justamente o primo Isolino, Josefina estava entre a esperança de uma nova tentativa e a entrada para a Congregação das Filhas de Maria. Optou mais uma vez pelo casamento. Confessadamente não sentia pelo primo o arrebatamento do primeiro namoro nem o amor mais sólido do segundo, porém não via hora de sair daquela situação. Matando jacaré a tapa e cachorro a grito, aceitou mais do que resignada.

Marcaram o casório para o segundo domingo de maio, aproveitando a ida do padre, o mês das noivas e o dia das mães. Uma festança programada pra ninguém botar defeito. O noivo, por outro lado e com a devida antecedência, cuidou de mandar uma carta para o pai, naquela altura viúvo e morando num seringal do Acre, para participar sobre o casamento, mesmo sabendo que não haveria tempo do velho marcar presença. Época dos lentos e monótonos navios a vapor.

Finalmente, o grande dia. Igreja cheia, expectativa geral e clima de melhor de três pontos numa decisão de campeonato. Alívio geral quando o noivo adentrou na igreja pelos braços da tia e futura sogra. A seguir, logo atrás, a noiva sorridente ao lado do pai de criação. Iniciada a cerimônia, veio do padre a velha indagação de praxe:

– Se alguém souber de algum impedimento…

Silêncio, silêncio sepulcral de arrebentar os tímpanos. De repente, não mais que de repente, como no belo soneto, ouve-se lá do fundo da capela um lento arrastar de chinelo no cimento: “chaap, chaap, chaap…” O noivo, espantado e surpreso, reconhece a figura do pai.

– Cumpadi Basílio! – grita o pai da noiva – ora, vamo entrando.

Macilento e alquebrado por incontáveis ataques de malária no seringal, o velho aceita o oferecimento e senta-se num dos bancos corridos. A seguir, dirige-se ao padre:

– Tem impedimento sim, seu padre, tem impedimento sim sinhô!

Ao ouvir essas palavras, mãe e filha caíram atacadas aos pés do santo altar e um zum-zum-zum é ouvido de ponta a ponta da igreja. O tão conhecido para pra acertar se instalou no ambiente. O pai da noiva reage:
– Qui qui é isso, cumpadi, tá amodo querendo estraga o casamento da minha Josefina?
– Nada disso cumpadi, só vim arrepará um erro.

Nessas alturas a igreja tinha virado um inferno de Dante, ninguém dizendo coisa com coisa. Já puto com aquela situação, o padre resolveu pedir as devidas explicações e o pobre velho não se fez de rogado, dirigindo-se ao pai da noiva:
– Cumpadi !
– Sinhô !
– Alembra quando eu lhe levei a Josefina pra criá ?
– Alembro, faz tempo, né cumpadi?

– Pois sabe duma?
– Não, qui é?
– A Josefina é minha filha, se minha velha Pachica soubesse…
– Filha de contrabando, de pecado, o senhor quer dizer ! – bradou o padre.
– Pois antão, como o sinhô pode vê, ela é irmã de sangue do Isolino, num pode casá.
– Irmão com irmão não tem casamento ! – tornou a bradar o padre.

Nesse instante o pai adotivo da noiva bota ordem na igreja, pede calma e tudo volta ao silêncio de antes. Vai lá pra frente do altar e toma a palavra:
– Eu também tenho uma explicação aqui pro seu vigário.

E vira-se para o velho compadre Basílio:
– Cumpadi !
– Nhô !
– Vosmicê ainda alembra da vez primeira que vosmicê foi pro seringar?
– Si alembro? Faz tempo, né, cumpadi?

– Alembra qui vosmicê deixou a cumadi Pachica – que Deus a tenha – morando lá em casa?
– Ora si lembro, tempo bom, né, cumpadi?
– Alembra que ela fez aquele bilhete dizendo que o sinhô tinha deixado ela prenha do Isolino?
-Ora, si lembro… tempo que o velho aqui era forte, né, cumpadi?
– Pois sabe, cumpadi, vamo então deixá esses meninos casá na santa paz, qui quem emprenhou a finada cumadi fui eu.

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