A ILHA, conto de Ademar Amaral

A ILHA, conto de Ademar Amaral

Ademar Amaral

Noite chuvosa de um dia difícil de esquecer: 13 de dezembro de 1968.

O   mais que arbitrário Ato Institucional No. 5 acabara de ser publicado, e Belém vivia um período de alvoroço em torno do movimento estudantil. Os órgãos de repressão tinham fortes indícios de que a clandestina UAP (União Acadêmica Paraense) programava grandes manifestações em vários pontos da cidade. Armadas até os dentes, as tropas de segurança patrulhavam as ruas como se fossem enfrentar uma guerra, atentas a tudo que pudesse denunciar algum início de agitação. Exército, Marinha, Aeronáutica e Polícia Militar estavam em alerta máxima, com especial cuidado nos lugares estratégicos onde os estudantes mais costumavam se materializar em grandes passeatas e aos gritos de “abaixo a ditadura!”. A atenção maior era para a área codificada de “Triângulo das Bermudas”, com vértices fincados nas faculdades de Engenharia, Direito e Medicina, os focos das mais importantes lideranças acadêmicas.

Naquela mesma noite, no outro lado da cidade e sem nenhuma ligação política ou ideológica com os acontecimentos de Brasília, um fazendeiro chega à sua casa sem avisar, esgotado após longa e cansativa viagem pela Belém-Brasília. A bela mansão ficava no centro de um grande terreno, no ainda distante bairro do Souza. Apreensivo por não ter encontrado o segurança no lugar de costume, larga a caminhonete na rua deserta, desliga o alarme do portão e retira da sacola uma arma de possante calibre. Descalça as botas de vaqueiro para não fazer barulho, entra e dirige-se ao quarto do casal, onde depara com uma cena jamais imaginada: sua linda e jovem esposa, emitindo gemidos, se contorcia na plenitude do gozo com o próprio segurança da casa. Tomado de total descontrole, o marido não pensa duas vezes: mira certeiro e descarrega nos dois quase todo o pente de balas.

AMANTES MORREM ENGALFINHADOS, foi a destacada manchete do dia seguinte, na primeira página do mais importante periódico da capital.

Após vencer breve hesitação diante da cena sangrenta, o fazendeiro sai correndo, retoma a direção da caminhonete e larga em disparada pela cidade. Mas ao cantar os pneus na terceira esquina, ouve a sirene de uma das patrulhas da Polícia Militar, alertada por moradores atordoados pelos disparos na calada da noite. Começa, então, uma das mais espetaculares perseguições de carro pelos arredores e ruas da mangueirosa Santa Maria de Belém do Grão Pará.

O instinto de sobrevivência do marido assassino era alcançar a Tito Franco (atual Almirante Barroso), para tentar fugir pela BR-316, no rumo do Maranhão, ou quebrar em Santa Maria, a porta de entrada da Belém-Brasília, onde poderia facilmente se acoitar na fazenda de um dos seus muitos amigos de Paragominas. Teve que mudar de plano porque o rádio da polícia já comunicara um alerta geral em toda a cidade, só lhe restando a opção de pegar a Augusto Montenegro para sumir em alguma viela de Icoaraci ou, quem sabe, atravessar o furo e se embrenhar na mata densa do Outeiro. Achou que essa era a rota menos pior e resolveu arriscar.

- Vadia!, Vadia! – gritou pra ninguém.

A perseguição, o som estridente das sirenes e o ajuntamento de outros carros fizeram sacudir aquela noite, depois de um dia muito tenso e de notícias desencontradas de todo o país. A polícia vinha-que-vinha, e o homem a toda velocidade, na direção da Vila Sorriso. Entrado na vila, ao atingir a esquina do antigo Clube Pinheirense, o fazendeiro usou da única alternativa que lhe restava e dobrou abruptamente à esquerda. Acelera de volta a Belém, coberto pelo túnel arborizado de mangueiras, até desembocar na orla sinuosa da rodovia Arthur Bernardes.

A caminhonete voa e se aproxima da entrada da Base Aérea, onde já haviam montado uma barreira para detê-lo. Pisou fundo e passou como um bólido pela guarda da aeronáutica, lançando à distância os cavaletes, mas teve o veículo atingido por três tiros sem nenhum dano sério que o fizesse parar ou mudar sua intenção de fuga. Atravessou o resto da Base Aérea, a vila naval e terminou confundindo por um tempo seus perseguidores ao desviar incerto por alguns becos e passagens da Sacramenta. Vencendo ruas lamacentas, segue em frente favorecido pelo carro traçado e quase capota ao fazer uma curva mais ousada na direção das docas.

Entra na Castilho França, percebe outra barreira da polícia perto do mercado de ferro e decide cortar por uma das estreitas travessas da zona comercial. Sobe pela Campos Sales até a Manoel Barata e dobra novamente à esquerda para ganhar a Presidente Vargas, na expectativa de diminuir caminho para alcançar a São Jerônimo (a José Malcher de hoje, com trânsito invertido) e chegar novamente na Tito Franco. Não havia nenhum outro plano que não fosse romper a barreira da Federal em Ananindeua para chegar à fazenda de um amigo, em Paragominas. Depois, como de costume, era conseguir um bom advogado e apostar na impunidade.

A chuva aumentava de modo assustador e isso reacendeu a esperança de despistar de vez a polícia, mas ele dá de cara com uma outra patrulha postada na esquina do antigo Cine Palácio. Sem vacilar, dobra à esquerda e volta a acelerar com vontade, descendo o estirão da avenida Presidente Vargas que dá acesso à escadinha do porto. Sitiado e num estado de estresse galopante, desmaiou com o pé fincado no acelerador, na hora que o carro pegou a rampa descendente a partir do prédio da Receita Federal. Atinge mais de duzentos por hora ao passar quase capotando rente à estátua do navegador Pedro Teixeira, arrebenta adiante a mureta da Doca e é arremessado com carro e tudo para dentro das águas barrentas da Baia do Guajará.

Acorda com o choque térmico da água lhe batendo nas canelas, mas o súbito despertar, ao invés de abatê-lo, injeta nele um novo ânimo de continuar lutando pela vida. Tenta forçar o trinco da porta, mas este não cede devido à pressão externa que força a água penetrar com rapidez pelas frestas inferiores do carro. Nesse momento, tem uma idéia que só vem de um ser humano em estado de total desespero: estoura o parabrisa da caminhonete com a última bala que tinha sobrado, no pente da sua arma.

Mil pequenos estilhaços de vidro atingem seu corpo, mas, finalmente, ele encontra o vão que precisava para escapulir na escuridão gelada da Baía. A chuva virou um forte temporal, o bastante para impedir o facho da lanterna da polícia e para ele se deixar arrastar, de bubuia, na forte correnteza da maré vazante.

Naquela hora toda a cidade já sintonizava a Rádio Marajoara e as chamadas infalíveis do famoso repórter Paulo Ronaldo que, “em edições sempre exclusivas e extraordinárias da Patrulha da Cidade”, dava alarde ao acontecido. A notícia, em forma de recomendação, era para que a população se mantivesse calma e em casa, porque a polícia caçava um perigoso comunista pelas ruas de Belém. Enquanto isso, o homem procurava se orientar na escuridão, mas era cada vez mais empurrado para fora do porto e impossibilitado de voltar.

A canseira era tanta que estava quase a ponto de lhe causar um novo e fatal desmaio, quando, milagrosamente, ele vislumbra luzes de um barquinho peixeiro vindo em sua direção. Arrisca umas braçadas, o suficiente para segurar numa ponta de corda que havia se desprendido da embarcação e vinha de rasto à maneira de uma longa serpente das águas. A bendita seria sua salvação ou sua morte. Agarrou-se à corda com mais fervor que um promesseiro do Círio, e foi sendo arrastado no meio do temporal. Diacho, que ao invés de atracar no emaranhado de mastros do Ver-o-Peso, o pequeno barco deu uma guinada de quarenta e cinco graus e penetrou num dos inúmeras furos do arquipélago que protege a frente de Belém.

A mão ardia e ele estava quase a ponto de desistir, não tivesse percebido a luz da lamparina que piscava acanhada, vinda de uma humilde barraca ribeirinha. Soltou-se e nadou até a vegetação que margeava o canal. Açodado, com o corpo dolorido e salpicado de ferimentos, conseguiu pisar em terra firme com extremo sacrifício, depois de quase ser tragado pela lama gulosa deixada pela maré. Tirou a camisa para enxugar as feridas e caminhou trôpego até próximo à barraca, onde se deitou para descansar sob a proteção de uma touceira de açaí.

Próspero grileiro de terras, com mil capangas sempre à mão para qualquer serviço, ali era apenas um assassino fugidio feito uma onça acuada. Ele e aquela luz chamativa da lamparina, mais luminosa de esperança que as mil luzes da cidade que ele havia deixado para trás. O resto, era o estrondo infernal da chuva, a mata fechada e uma sufocante angústia a separá-lo de suas outras vidas. Imaginou que os da barraca haviam saído para pescar, ou fosse pousada de algum apanhador de açaí que tinha ido vender o produto no Ver-o-Peso.

Ficou um tempão encoberto pela vegetação, batido pelo açoite do vento e pelo frio do início da madrugada que começava a lhe moer os ossos. Sem outra ideia melhor e com a voz capenga arriscou um desconfiado “oi de casa!”.

-Oi de casa! – tornou a falar.

Uma voz soturna responde do quarto e uma figura de mulher assoma à porta:

-Quem está aí fora? Se é do bem pode se chegar.

Ele surge molambento por detrás da touça e caminha com cuidado.

-Aproxime, seu moço, o que lhe traz?

-Meu barco... o temporal me afundou ali na baía.

Afora a rede espaçosa, num dos cantos da pousada havia uma tosca mesinha com alguns santos de devoção, quase desaparecidos num emaranhado de fitas de promessas, um radinho de pilha ao lado da rede e a velha lamparina a querosene.

-Olhe, puxe aquele mocho e se sente.

De aparência jovial, brincos baratos e cabelos sem trato caídos até a cintura, a mulher aproxima a luz da lamparina e percebe os cortes sem conta no corpo do homem, provocados pelos cacos de vidro que voaram do parabrisa.

-Valha-me Deus! O senhor está sangrando... – e roçou os lábios carnudos enquanto seus olhos emitiam um misterioso brilho amarelado.

-Que foi? – perguntou o homem - tá sentindo alguma coisa? Tá de paquete?

-É o sangue, sabe, fico transtornada. Vá, deite na minha rede, é só o tempinho de preparar um chá.

Minutos depois o fugitivo toma o chá quente e logo cai em sono profundo. Acordou com o dia clareando e levou o maior susto ao abrir os olhos. A mulher estava quieta, sentada no mocho e firme nele com aqueles olhos de intenso brilho amarelado. Fez esforço para se levantar, mas sentiu as pernas presas e insensíveis como as de um paraplégico.

-Dormiu bem?

-E a senhora?

-Andei na mata, fui arranjar comida.

-Tem alguma coisa aí?

-Que nada, nem ao menos uma paca, tô quase uma semana no açaí com farinha.

Com passos felinos, ela buscou a lamparina pra ilharga da rede. A claridade, contra a roupa transparente, produziu o milagre de sobressair seu corpo bem talhado de prodigiosas pernas e ancas, contaminando a barraca com um perfume inebriante de flores silvestres.

-Então, foi o senhor?

-Eu? Que tem eu?

-O tal comunista que matou a mulher?

-Não sou comunista. Quem disse isso?

-Escutei na rádio, tão dizendo que o senhor morreu afogado aí na Baía do Guajará.

-Melhor que pensem assim, eu estou mesmo meio morto.

-Meio morto? Morto e meio...

Ele levou um susto, a vontade era fugir, se mandar dali. “Cadê as pernas”? “Algum feitiço”? O efeito do chá parecia ter lhe paralisado as forças e o poder de ação.

-Deixe eu ir, minha mulher era uma vagabunda...

- Mas precisava matar?

-Sei lá, e esse negócio de comunista... Ah, não, isso não. Dizem que eles comem criancinhas.

Foi nessa hora que o misterioso brilho amarelado dos olhos da mulher ficou intenso como duas bolas de fogo, e ela começou a se contorcer numa espécie de transe. Sentou-se à beira da rede, levou as mãos às feridas e as esfregou com vontade, sem que o homem sentisse um pingo de dor. O sangue volta a brotar e ela avança sedenta para lamber os cortes.

Estranhamente há um grande alívio ao ser tocado por aquela saliva anestésica, tão mágica como a dos morcegos hematófagos que tanto perseguiam seu rebanho. Ao mesmo tempo em que se esvaía, veio, repentinamente, uma forte e incontrolável ereção como nunca havia experimentado na vida. Ela se afasta um pouco, deixa cair o vestido de chita e exibe a maravilhosa nudez. O homem continua paralisado, mas logo sente um mar de prazer quando ela monta e cavalga sobre ele.

Com volúpia de fêmea no cio, ela acelera o ritmo e emite fortes rugidos, sem parar o agito frenético de continuar lambendo o jorro do sangue que já lambuzava o pano da rede. Não saciada, passou a mordê-lo com voracidade e abrir sua carne com unhas afiadas que mais pareciam garras de um bicho. Veio uma dentada mais violenta que lhe atingiu a jugular, e a sensação imediata de entrar num túnel escuro e sem saída. O mesmo que Dalcídio Jurandir descreve como “o escuro crescendo, crescendo até o limite em que tememos encontrar-nos unicamente conosco”, e que seu cérebro pressentiu menos de um milésimo de segundo antes da traqueia ser estraçalhada por poderosos caninos, num arrebatamento indescritível de orgasmo supremo. Fugaz e derradeiro instante de lucidez aquele, o bastante para fantasiar sobre a ilha das mulheres onças, lenda que corre séculos a respeito desse matagal fechado que demarca a orla da Baía do Guajará. Ilha das Onças, refúgio derradeiro da sua mente diante do desconhecido e da total ausência das preocupações e dos sofrimentos.

Comentários  

0 #1 Rute Burlanaqui B 10-11-2021 20:19
Causo desenrolado em época [censored]stórica do país, com toques de lenda tupiquiniquim. Célere, prende-nos a atenção com suspense dinâmico nos conduzindo rumo ao inusitado desenlace . Muito interessante . Estilo escorreito!
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