Jorge Ary Ferreira.
Xiboreno e Caiçara são dois amigos que cresceram no Bairro de Santa Terezinha nos anos 60/70.
Caiçara é filho de Seu José Canto da Silva e D. Maria do Socorro Albuquerque da Silva (ambos falecidos). Irmão da Áurea, do Areolino, do nosso grande poeta José Deolindo, além de outros. Uma família oriunda do Lago Grande do Salé, Carpinteiros natos, profissão que herdaram do pai, assim como a alcunha. Todos são conhecidos como Caiçara.
Xiboreno é Filho do casal S. Alberto (já falecido) e D. Raimunda Machado. Sou suspeito para comentar sobre a sua família, pois me sinto parte dela. Raimunda tem o coração maior do que o corpo. Sua casa, em Manaus, há sempre um armador disponível para um sobrinho, um amigo ou um enfermo que chegue do interior do Pará - Municípios de Óbidos e Terra Santa. Também tem disponibilidade para acolher quem lá chegue para tentar a vida ou necessite de um apoio fraterno. No seu cardápio, à disposição da visita, tem um mocotó de sabor inigualável e um bule de café.
Foi D. Raimunda que, junto com minha tia Maria José Ferreira, resgatou o Cordão da Garcinha nos anos 70. Criou, além de seus filhos, Zé Alberto, Yolane, Rosinaldo (já falecido), Zuleide, muitas outras crianças e, pasmem, deu rumo na vida de todos. Dos seus filhos “adotivos” tem um que até hoje lhe dá trabalho. Esse, meu amigo e irmão Lelé, vez em quando ainda leva uns puxões na orelha.
Por volta de 72/73, inaugurou, em Óbidos, a Escola Estadual de 1º Grau Felipe Patroni. A inauguração coincidiu com a reforma da educação implementada pelo então Ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Lá estudavam, na mesma turma, Xiboreno e Caiçara.
Caiçara morava na mesma casa onde hoje funciona sua movelaria. Xiboreno residia ao lado do campo, hoje Praça de Terezinha, onde atualmente funciona o Sindicato dos Motoristas de Óbidos.
Religiosamente, todos os dias, às 6h30min, os dois tinham encontro marcado nas proximidades do Campo de Terezinha - hoje Praça de Sta. Terezinha, sempre trajando calças azuis e camisas de tergal lavadas com São Caetano, cuidadosamente engomadas.
Nos bolsos carregavam algumas petecas para as disputas do final da aula, que aconteciam no retorno para as suas casas.
Mantinham-se impecáveis até a hora do recreio, quando “grudavam” na pelada do campinho da escola - um desafio diário contra a turma vizinha.
Só desistiam do jogo quando a inspetora, D. Oneide, os obrigava a voltar para a sala de aula.
No final da disputa estavam sempre “empoados” com a poeira que, somada ao suor produzido pelo esforço físico, lhes deixava umas fitas pretas que desciam pelas testas e que, muitas vezes, acabavam grafadas nos apontamentos de geografia.
No retorno “caçavam” qualquer moleque desocupado que dispusesse de algumas petecas sobrando para “abufitar no turite”. Quando não encontravam tal presa, voltavam às suas residências apostando “chulipa” com caroço de tucumã.
À tarde tinham a obrigação de dar uns “bordos de malhadeira” ou pescar de linha comprida no pingo d’água. Assim, livravam a despesa de seus familiares com o jantar.
Faziam isso com o maior prazer. Porém, sempre procuravam estar de volta lá pelas 16 h., afinal, a dupla era a revelação do “dente de leite” do Atlético Paroquial Vasco da Gama. No campinho, juntavam-se a outros personagens treinados pelo amigo Joaquim Mamede, o famoso Periquitão, que tantos atletas revelou para o futebol obidense.
Foi numa dessas pescarias que, na ânsia de voltar cedo para casa, subiram o Rio Amazonas o máximo que puderam. Passaram da boca do Arapucú e estenderam a malhadeira. Como o tempo era de piracema, logo os peixes “cutucaram”. Então, abasteceram a canoa com Apapá Amarelo. O branco era considerado “de segunda” e, por isso, só aproveitado se faltasse melhor espécie.
Com a tarefa cumprida - não adiantava trazer muitos peixes pois geladeira era coisa de rico, encostaram a canoa numa bola de capim, meteram o remo por trás do banco e vieram “descaindo”, pitando uma bagana de Arizona encontrada na descida do cais do porto. Fumar era um grande segredo. Seus pais não poderiam nem sonhar com tal proeza.
Desciam o Rio já pensando nas jogadas ensaiadas para o treino. Faziam planos para a estreia dos “K-Chute”, quando Caiçara olhou pro capim e disse:
- Égua, Xiboreno, que bola é essa?
Xiboreno deu um jeito e conseguiu, com o remo, puxar o objeto pra mais perto. Apanhou-o e percebeu tratar-se de uma fruta, afinal, tinha o cabinho do galho em uma das extremidades.
Olharam-na de todos os jeitos e não conseguiram identificá-la. O lado que estava em contato com a água já aparentava sinais de podridão, mas a parte de cima ainda estava boa.
A tal fruta era avermelhada - quase da cor de jambo, arredondada e com as duas extremidades achatadas.
O passo seguinte foi inevitável. Xiboreno logo disse:
- Vamos provar?
Caiçara, mais prudente, argumentou:
- Eu, heim! E se essa porra for veneno?
O amigo logo retrucou:
- Não é não. Jogaram de algum navio!
Com medo, Caiçara insistiu:
- Olha parceiro: é melhor provarmos em terra. Lá, pelo menos acham à gente...
- Que veneno nada! Retrucou Xiboreno.
Logo pegou a faquinha que fazia parte dos apetrechos de pesca e tirou, cuidadosamente, a parte estragada. Cortou um pedaço, provou e deliciou-se com o sabor - um misto de doce com azedo.
Percebeu a textura firme. Era diferente de tudo o que já havia provado na vida, até então.
De certa forma, gostou muito e incentivou o parceiro a prová-la, dizendo:
- Égua, Caiçara, é bom!
E foi cortando um pedaço para o amigo que, curioso, já lambia os beiços.
Assim, comeram o restante da fruta e ficaram na dúvida sobre o que teriam comido.
Passados alguns dias, lá estavam os dois na escola assistindo uma aula de inglês ministrada pelo então professor Luiz Carlos. Tal matéria havia sido introduzida naquele ano, a partir da reforma da educação. Parecia tão difícil que foi capaz de fazer muitos obidenses abandonarem os estudos.
Um conterrâneo amigo ao desistir de estudar, comentou com os colegas da seguinte forma:
- Passei a vida sabendo que A é A, e agora eles vem me dizer que A é EI. A gente lê THAT e diz DÉTI... Uuuua braba, não dá pra mim!
E para se ter melhor aproveitamento das aulas, o MEC fornecia uma cartilha para cada matéria. A de inglês era bem didática - tinha a palavra na língua inglesa, sua tradução em português e a figurinha do objeto ao lado.
E assim estudava-se:
Cat = Gato e a figura do gatinho do lado;
House = Casa e o desenho da casa do lado.
Foi quando o professor disse-lhes:
- Apple = Maçã.
Vendo a figura ao lado da tradução, os olhos de Xiboreno brilharam. Logo associou aquela figurinha à fruta que haviam comido há três semanas. E, mansamente, foi virando-se no rumo do companheiro Caiçara que ocupava em uma das últimas filas. Encontrou-o com o polegar levantado, olhos arregalados, sorriso aberto e um grito de desabafo:
- XIBORENO, COMEMOS MAÇÃ!
O professor, intrigado, perguntou-lhe:
- O que é isso menino?
E a dupla passou a narrar tal façanha.
Imaginem o quilate de “pavulagem”...
A turma, morta de inveja, escutava e desfazia da proeza dos dois amigos. Tudo porque a única maçã que se conhecia em Óbidos, naquela época, era o zelador do Cine Acácia, o nosso querido “Sr. Maçã”!
Um forte abraço ao amigo Stones Machado, o Xiboreno, e ao Aurélio Albuquerque da Silva, o Caiçara, dois chefes de famílias exemplares. Stones é empresário na Capital do Estado do Amazonas e Aurélio, também empresário, administra sua oficina de móveis no querido bairro de Santa Terezinha, e honram, com dignidade, o nome de nossa cidade de Óbidos.
www.obidos.net.br - Matéria republicada
Comentários